São de 1958 estes cartazes de ponto de venda para o gás doméstico de garrafa Gazcidla, protagonizados por uma mulher que veste o famoso New Look, criado em 1947 por Christian Dior, onde o corpo de ampulheta e o Victory roll nos cabelos substituem a austeridade dos tempos da Segunda Guerra. Capaz de registo glamouroso e realista na figuração feminina, praticado por exemplo em anúncios dadécada de 60, Alberto Cardoso (Elvas, 1918-Lisboa, 1999) apresenta-nos aqui uma mulher de aparência cómica e geometrizada. Se a presença absoluta da mulher «fada do lar» é ainda reflexo da cultura patriarcal, o busto saliente, a cintura fina e as saias amplas e rodadas são sinal de uma assumida feminilidade e empoderamento. Num raro formato, quase quadrado, de 39 x 40 cm, impressos em cores diretas, os seis cartazes que serão, provavelmente, uma série completa, focam consagradas utilizações do gás butano nas lides domésticas que se repetem, com as mesmas designações, numa outra série de cartazes da década seguinte, também do Gazcidla, desenhada por Câmara Leme, e já apresentada no Almanaque. O acréscimo de prosperidade doméstica aqui retratado coincide com o aquecimento geral da economia do país, que se vai acentuar na década seguinte e convoca, da parte dos organismos oficiais e dos empórios industriais, um esforço de comunicação apreciável. As marcas Gazcidla e Propacidla, oriundas da petrolífera estatal SACOR, têm um riquíssimo historial de propaganda, colaborada por alguns dos mais interessantes ilustradores portugueses de meados do século. Além do New Look de Alberto Cardoso, há lugar ainda para as anedotas marialvas de Gabriel Ferrão, o construtivismo retro de Piló ou o traço vitralista de João da Câmara Leme.
Alberto Cardoso é um dos mais notáveis artistas gráficos do século XX português e a sua vasta obra, que se prolonga por seis décadas, repartida pela ilustração, design editorial, publicidade comercial e design expositivo, não tem bibliografia dedicada. O perfil modesto de Alberto Cardoso, muitas vezes assistindo outros artistas com mais projeção mediática, como Thomaz de Mello (Tom), deixa-o na sombra da história do design português. Mas está no prelo uma exaustiva biografia, investigada e escrita pelo designer Paulo Marcelo, a partir da sua tese de doutoramento, com particular foco na extensa colaboração de Alberto Cardoso com a Oliva, empresa industrial inovadora que ficará célebre pelas suas máquinas de costura, sediada em São João da Madeira, no distrito de Aveiro.
Alberto Cardoso (1918-1999): O “pintor, layoutista, arte finalista, montrista, decorador e fotógrafo” que se tornou designer, Tese de doutoramento, Paulo Jorge Leitão Marcelo, 2022
Costumes nacionais — Portugal. Ementa do almoço: Sopa familiar, Moqueca de peixe, Arroz de frango à valenciana, Bifes na grelha. Dietas: Sopa de puré de legumes, Canja de galinha, Filetes de peixe, Batatas cozidas, fritas ou puré, Arroz de manteiga. Sobremesa: Queijo, Fruta verde, Chá, café e leite. Paquete «Pátria», 25 de novembro de 1949
A CCN – Companhia Colonial de Navegação, constituída em 1922, será, tal como a sua rival Companhia Nacional de Navegação, uma empresa-bandeira importante na projeção da imagem de Portugal no mundo, desígnio a que o Estado Novo e os seus organismos de propaganda, como o SNI, se aplicarão com afinco. Artistas plásticos e gráficos relevantes deixarão a sua assinatura na decoração de interiores e em artefatos de comunicação. Ilustradores-designers como Alberto Cardoso e Manuel Lapa, por exemplo, vão aprimorar as ementas marítimas de alguns dos grandes navios que fazem a ponte entre a diáspora geográfica portuguesa. À pintora Estrela Faria caberão os cardápios ilustrados para os viajantes da primeira classe do Paquete Pátria, um dos navios de passageiros da CCN que, em 1949, reluzente nos seus dois anos de idade, deambula pela América do Sul, com especial regularidade pelos portos das cidades brasileiras. Estrela Faria abrilhanta os almoços e jantares com ilustrações de temática tropical, retratando vários clichés de paisagens e costumes brasileiros, e uma evocação portuguesa num quadro de varinas lisboetas. A mão segura da pintora revela-se num clássico jogo de impressão em três cores diretas complementares e na composição de manchas de cor que não carece de traço de contorno. As requintadas refeições do Pátria merecem acompanhamento musical: as ementas trazem ainda, na última página, o «programa do Concerto» que, acreditamos, teria execução ao vivo por uma pequena orquestra.
Gradualmente, os navios de carreira vão perdendo passageiros para o avião. O Pátria será fretado pelo Estado a partir de 1962 para transportar contingentes militares para a guerra colonial em África e, em 1973, fará a sua viagem final, já sucata flutuante. Parte de Lisboa para Singapura onde será desmantelado.
Costumes baianos — Brasil. Ementa do almoço: Sopa à agricultor, Pescada à valenciana, Carneiro à inglesa, Bifes na grelha, Ovos estrelados. Dietas: Sopa de puré de legumes, Canja de galinha, Peixe cozido, Batatas cozidas, fritas ou puré, Arroz de manteiga. Sobremesa: Queijo, Fruta verde, Café e chá. Paquete «Pátria», 29 de novembro de 1949
Palácio presidencial em Guanabara — Rio de Janeiro. Ementa do jantar: Sopa «garbour», Orlys de peixe – molho de tomate, Escalopes de lombo panados, Leitão à Bairrada. Dietas: Sopa de puré de legumes, Canja de galinha, Pescada cozida, Batatas cozidas, fritas ou puré, Arroz de manteiga. Sobremesa: Fruta verde e seca, Café e chá. Paquete «Pátria», 3 de dezembro de 1949
Praça Paris — Rio de Janeiro. Ementa do almoço: Caldo verde, Arroz de polvo, «Sauté» de vitela com legumes, Bifes grelhados, Ovos estrelados. Dietas: Sopa de puré de legumes, Canja de galinha, Filetes de peixe panados, Batatas cozidas, fritas ou puré, Arroz de manteiga. Sobremesa: Fruta verde, Chá, café e leite. Paquete «Pátria», 8 de dezembro de 1949
Doca e Praça de Mauá — Rio de Janeiro. Ementa do jantar: Sopa «crecy», Linguado ao Colbert, Frango ao marengó, Perna de carneiro à inglesa. Dietas: Sopa de puré de legumes, Canja de galinha, Filetes de peixe panados, Batatas cozidas, fritas ou puré, Arroz de manteiga. Sobremesa: Fios de ovos, Fruta verde e seca, Café e chá. Paquete «Pátria», 8 de dezembro de 1949
Monumento à independência do Brasil — São Paulo. Ementa do jantar: Creme royal, peuxe au meunier, Mousse de foie-gras, Peru recheado. Dietas: Sopa de puré de legumes, Canja de galinha, Filetes de peixe panados, Batatas cozidas, fritas ou puré, Arroz de manteiga. Sobremesa: Fruta verde e seca, Café e chá. Paquete «Pátria», 23 de dezembro de 1949
Estrela da Liberdade Alves Faria (Évora, 1910-Lisboa, 1976) deve o seu exótico nome aos ardores republicanos do pai e à coincidência do seu nascimento com a recente implantação da República, cinco dias antes. Artista plástica pertencente ao Segundo Modernismo português, cumprirá o destino de tão auspicioso nome e terá obra relevante na na pintura mural, cerâmica, ilustração, decoração, joalharia e cenografia. Numa entrevista à RTP em 1968, afirma: «O meu estilo de trabalho é mais pintura mural, frescos ou outro género mais moderno. Prefiro pintura figurativa, porque sempre me habituei a pintar assim, embora lhe dê o meu cunho pessoal.» Do seu extenso legado avultam uma pintura mural no antigo cinema lisboeta Alvalade, em 1953, um painel em azulejo de temática bíblica no Tribunal de Évora e Bailarinos, escultura em cerâmica para o Hotel Ritz, de 1958. Na sua faceta de ilustradora, destaca-se a sua presença regular em magazines, colecionáveis de literatura universal e séries de postais de Boas Festas dos CTT. Familiares e historiadores de arte realçam a sua coragem e independência, capaz de rasgar convenções, e como figura inspiradora para as mulheres e artistas do seu tempo. Na extensa biografia ilustrada que a revista A Magazine lhe dedica sublinhamos as palavras de Raquel Henriques da Silva: «Foi uma mulher comprometida com a sua vocação e profissão, ela escolheu ser pintora e percebe-se que é uma questão fundamental para ela e que é a vida dela.»
Fontes
RTP, Entrevista de Estrela Faria com Igrejas Caeiro, programa «Perfil de um artista», 23.05.1958
RTP, Entrevista de Estrela Faria com Conchinha, 08.02.1968
Será a primeira mulher a frequentar o café A Brasileira, no Chiado, então reservado apenas a homens. Aluna de Columbano, que influencia o tema das suas obras iniciais, dedicadas ao retrato, e com as inevitáveis passagens por Paris, onde chegará a colaborar com a pintora Sonia Delaunay e, simultaneamente, num ateliê de alta costura. Nunca terá sucesso público com a sua pintura e acentuando a sua já longa dedicação à costura, ao bordado e à decoração de ambientes domésticos, Sarah Affonso (Lisboa, 1899-Lisboa, 1983) imprimirá as premissas do movimento modernista, explorando a iconografia religiosa popular oriunda do Minho (onde viveu grande parte da infância e juventude) com os seus presépios, procissões e oratórios de culto às almas do purgatório, as célebres alminhas. O relevo dado à tradição rural portuguesa fica refletido, não só na sua obra de pintura, mas também na ilustração, muitas vezes em traço rápido, roçando o naïf. Registo que também aplicará em inteligentes bicromias nas capas da revista semanal Eva, entre 1931 e 34.
Ao número 291 de 6 de dezembro de 1930, Helena e Màmía, filhas do aguarelista Alfredo Roque Gameiro, assumem a direção da revista feminina Eva, ocupando o lugar de Helena de Aragão, que resigna a seu pedido e irá liderar a nova revista Femina, no início do ano seguinte. Com as irmãs Roque Gameiro, as capas da Eva abandonam os retratos a sépia de jovens talentosas e respeitáveis matronas da sociedade chic e são substituídas gradualmente por ilustrações de flores e motivos vegetais bordados. Helena e Màmía dirigem a revista até ao número 338 e a sua passagem fugaz pela Eva introduz em larga escala a ilustração editorial na revista que, durante muitos anos, estará nas mãos de um escol quase exclusivamente feminino onde pontuam Maria Adelaide Lima Cruz, Clementina Carneiro Moura, Laura Costa, Ofélia Marques, Maria Vasconcellos, Aurora Severo e, naturalmente, as irmãs Màmía e Raquel Roque Gameiro, e as filhas desta, Manuela e Guida Ottollini. Este episódio é um dos pedaços mais emocionantes da história da ilustração portuguesa.
Eva, número 353, 13 de fevereiro de 1932
Eva, número 383, 10 de setembro de 1932
Eva, número 394, 22 de outubro de 1932
Eva, número 398, 26 de novembro de 1932
Destacam-se pela sua frescura e ingenuidade gráfica cinco ilustrações para capa de Sarah Affonso, resistindo bem melhor ao tempo que o perfeccionismo cinematográfico de uma Raquel Roque Gameiro, de longe a ilustradora mais prolífica da revista. As mulheres imaginárias que protagonizam estas capas, entre a sofisticação dernier cri dos ditames da moda parisiense, ou os ecos da vida campestre, manifestam um óbvio empoderamento feminino, sem o artifício e a pose que, alguns anos depois, serão recorrentes na ilustração da Eva, já sob a direção de Carolina Homem Christo, nas glamourosas cenas galantes que representam a alta sociedade portuguesa, intercaladas por figuras femininas de atavio folclórico. Juntamente com outras revistas, como a Modas & Bordados, Femina e Portugal Feminino, a Eva integra uma frente importante de afirmação e emancipação das mulheres portuguesas, mesmo quando os seus conteúdos textuais e gráficos parecem estar subordinados às chamadas «prendas femininas». Na verdade, as correntes modernistas que se sucedem a partir de meados dos anos 10 do século passado têm no seu progama estético as artes decorativas e os costumes de raiz rural. Apesar das contingências da sua educação escolar e familiar, e do expetável papel que a sociedade patriarcal lhes reserva, muitas mulheres conseguem afirmar uma carreira como ilustradoras editoriais, realizar uma obra inspirada nas vanguardas dos movimentos estéticos e lutar por um papel igualitário na sociedade do seu tempo.
Os desenhos de Sarah na revista «Eva» enquadram-se facilmente na apreciação que críticos e historiadores de arte colam à sua obra total. Dirá Diogo de Macedo: «Sarah Affonso não vê a vida senão pelo lado infantil, pelo mais puro, pelo mais ingénuo. A sua arte é alegre, sem sombras, sem dostoievskismos assustadores.» Sarah fará ainda duas outras capas para a Eva sem figuração feminina evidente. Uma cesta com flores no número 364 de 30 de abril de 1932, e a última de todas, publicada a 17 de março de 1934. Duas mãos, femininas, seguram duas pombas, simbolismo recorrente na sua obra gráfica. Neste mesmo ano, Sarah Affonso vai casar com Almada Negreiros. O percurso artístico como pintora e ilustradora vai extinguir-se gradualmente. Desfazendo a impressão generalizada de que Almada teria anulado a sua carreira, de que até o próprio pintor se penitenciava, Sarah dirá mais tarde que a apatia do público e da crítica e a ausência de encomendas é que a afastaram irremediavelmente dos pincéis e das telas. Só muito mais tarde, a partir de 1955, o seu trabalho de ilustradora voltará a ser impresso, em contos avulsos da revista Menina e Moça e, em 1958, no livro de Sophia de Mello Breyner Andresen A menina do mar.
Fontes
Sarah Affonso, Maria José de Almada Negreiros, Colecção Arte e Artistas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989
Sarah Affonso: Os dias das pequenas coisas, dir. de Emília Ferreira, Tinta da China e MNAC, 2019
Sarah Affonso – Almada, catálogo, João Vasco e Rui Mário Gonçalves, Câmara Municipal de Cascais, 1996
Eva: Ilustradoras portuguesas do século XX, Jorge Silva, Arranha-Céus/ Casa da Cerca, 2021
Em 28 de maio de 1937, a edição 52 do jornal Acção comemora «o ano XI da Era Revolucionária», ou seja, a implantação da Ditadura a 26 de maio de 1926. A edição, mais volumosa que o habitual, publica uma inusitada campanha de seis anúncios dedicada à produção comercial do vinho. O apelo dos anúncios «Consultai os Serviços Técnicos da Federação» passa pelo uso, corrente na propaganda oficial, do verbo na forma imperativa. A Federação a que os anúncios se referem é a Federação dos Vinicultores do Centro e Sul de Portugal, organismo corporativo do Estado Novo, criado por decreto-lei em 1933. Pelos seus quadros dirigentes vão passar três futuros ministros da Economia e dois ministros da Agricultura. A Federação será extinta ainda em 1937 e dará lugar à Junta Nacional do Vinho, que vai concretizar os mesmos desígnios da antecessora: regulação e regulamentação destinadas a estabilizar o mercado vinícola, fixar quotas de produção, fomentar a colaboração entre produtores e modernizar práticas de viticultura para a qualificação dos vinhos portugueses. A importância estratégica do vinho no fomento da agricultura e indústria portuguesas ficará bem expressa num cartaz posterior, de 1938, desenhado por Mário Costa, já editado pela JNV, que afirma que «Beber vinho é dar o pão a um milhão de portugueses», slogan que faz parte do anedotário sobre o Estado Novo.
Os seis anúncios onde se promove a qualificação sanitária e tecnológica de várias fases da produção do vinho tem excelentes ilustrações que estão em linha com a produção mais interessante da época. O traço caligráfico e o chiaroscuro, o teor claramente narrativo, a cinematografia expressa nos enquadramentos cortados e o rebatimento artificial da perspetiva, são atributos da segunda geração modernista, de qualidades semelhantes aos desenhos de um Tom ou de um Bernardo Marques. A assinatura das ilustrações é equívoca mas, pelos olhos vazados das figuras e o tratamento de volumes, julgamos tratar-se de Arlindo Vicente (Troviscal, 1906-Lisboa, 1977) que, por estes anos, desenha cartoons de cariz político e social neste jornal anticomunista e anticapitalista, claramente inspirado no Fascismo italiano. Futuro dissidente do Estado Novo e defensor da democracia (ver https://almanaquesilva.wordpress.com/category/arlindo-vicente/), Arlindo Vicente junta-se a José de Lemos e Manuel Ribeiro de Pavia, este último um referencial ilustrador neorrealista, colaborando, em fases iniciais das suas carreiras, na cruzada nacionalista do jornal Acção contra a União Soviética e os Republicanos da Guerra Civil Espanhola.
Poirot desvenda o passado, Agatha Christie, Colecção Vampiro, n.º 1, Livros do Brasil, 1947, Cândido Costa Pinto
Um chapéu de chuva, cinco caixas, uma luva cinzenta e um copo de cocktail são as pistas dadas por Cândido Costa Pinto na capa do livro de Carter Dickson 5 Caixas = Morte, a partir da lista mais generosa arrolada pelo editor da «Vampiro», que faz parte de um extenso texto que brinda os leitores, no fecho do número anterior, o número 74, com o método para desenhar as surrealistas capas da coleção.
Como são elaboradas as capas de cada um dos volumes da «Colecção Vampiro»?
Inicialmente a Secção de Leitura faz um resumo do romance e envia-o à Secção de Ilustração e Desenho. O resumo tem de ser redigido com extremo cuidado, pois, dada a natureza do romance policial, não é conveniente comunicar ao desenhador a solução, para que na capa não apareça qualquer indício que roube ao leitor o prazer do desenlace-surpresa. Assim, a condensação deve dizer respeito unicamente aos pontos principais do enredo. No caso de 5 caixas = morte foi a seguinte:
1. Objectos que têm importância preponderante no desenrolar da acção: Um chapéu de chuva de estoque manchado de sangue – a arma do crime / Cinco caixas embrulhadas em papel castanho e lacradas a vermelho / Um braço de manequim com uma luva cinzenta calçada / Uma grande quantidade de veneno: atropina / Quatro relógios de algibeira / O mecanismo interior de um despertador / Um pedaço de vidro em forma de lente convexa / Uma luva de homem, castanha / Um pequeno frasco cheio de fósforo e outro cheio de cal viva.
2. A acção passa-se em Londres. Felix Haye, um bon vivant, é apunhalado nas costas com um estoque transportado num chapéu de chuva, durante uma reunião em sua casa com três pessoas: Sir Dennis Blystone (alto, de aparência distinta, um dos mais famosos cirurgiões londrinos – as suas mãos têm uma característica interessante: os dedos indicadores são quase do mesmo tamanho que os médios), Bernard Schumann (velho, de cabelos brancos, olhos aparentemente inofensivos, especialista em múmias e outros objectos de arte egípcia) e Bonita Sinclair (uma formosa mulher, misteriosa e enigmática). Haye e os três convidados são encontrados à volta de uma mesa, com um copo na frente de cada um. Haye está morto e os restantes narcotizados com atropina que alguém deitou nos cocktails.
(…)
5 Caixas = Morte, Carter Dickson (John Dickson Carr), Colecção Vampiro, n.º 75, Livros do Brasil, 1953, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
Protagonizado por crónicos detetives amadores que suplantam com a sua perspicácia e criatividade a ronceira polícia britânica, o whodunit, uma elisão coloquial de «Quem fez isto?» é uma variedade sofisticada do romance policial com foco nas pistas sobre o caso, um crime de sangue, para o qual o leitor é também convidado a deduzir a identidade do criminoso, antes de o enredo a revelar num clímax final. O whodunit é essencialmente britânico mas americanos como S. S. Van Dine, Ellery Queen e John Dickson Carr vão também imitar o estilo. Durante a Idade de Ouro da ficção policial, entre as duas guerras mundiais, o género whodunit tem a curiosidade de ser dominado por escritoras, como Agatha Christie, Christianna Brand, Dorothy L. Sayers, Gladys Mitchell, Josephine Tey, Margery Allingham e Ngaio Marsh.
O termo «whodunit» tem paternidade incerta. Terá sido criado por Donald Gordon, articulista do News of Books, em 1930, numa recensão do romance policial Half-mast murder, escrito por Milward Kennedy. Mas o jornalista Wolfe Kaufman jura que a palavra whodunit é sua invenção para um artigo de 1935, da revista Variety. Para complicar, a primeira aparição da nova palavra na revista acontece antes, em 28 de agosto de 1934, grafada por Abel Green logo no título de um comentário à adaptação cinematográfica da peça Recipe for murder: «U’s Whodunit: Universal is shooting ‘Recipe for Murder, peça de Arnold Ridley».
Cândido Costa Pinto assinará as primeiras 112 capas da «Vampiro», entre 1947 e 1956, ilustrando 40 autores diferentes onde abundam os escritores referenciais do whodunit: treze livros de Ellery Queen, 13 de Erle Stanley Gardner, onze de Agatha Christie, sete de S. S. Van Dine, sete de Georges Simenon, seis de Dorothy L. Sayers e cinco de John Dickson Carr (incluindo o pseudónimo Carter Dickson).
Knock-out, Sapper, Colecção Vampiro, n.º 5, Livros do Brasil, 1947, Cândido Costa Pinto
Qual dos cinco, Dorothy L. Sayers, Colecção Vampiro, n.º 22, Livros do Brasil, 1949, Cândido Costa Pinto
Um Drama no Atlântico, Mignon G. Eberhart, Colecção Vampiro, n.º 36, Livros do Brasil, 1950, Cândido Costa Pinto
O gato de diamantes, Dorothy L. Sayers, Colecção Vampiro, n.º 112, Livros do Brasil, 1956, Cândido Costa Pinto
Cândido Costa Pinto (Figueira da Foz, 1911-São Paulo, 1977 ) vai operar uma verdadeira revolução no design do romance policial em Portugal, restaurando a reputação literária do género. A milagrosa receita resulta num discutível Surrealismo que Costa Pinto provavelmente cumpre melhor no seu ofício de pintor. Se a gramática está lá, pontuada até por objetos pictóricos gratos ao movimento, como relógios e chaves, falta o automatismo onírico caro aos surrealistas. A surpreendente novidade desencadeada por Cândido no arranque da coleção, em 1947, cumpre também o tom claramente dedutivo de clássicos ingleses (e americanos) a que a «Vampiro» dedicou muitos dos seus volumes.
A Biblioteca Silva apresenta 12 originais da sua coleção de capas da «Vampiro», obras de Cândido Costa Pinto em guache e colagem. Uma delas, aMão decepada, é um curioso plágio de uma edição inglesa de 1945 e que, prudentemente, Cândido não assina. Poderá ter sido imposição do editor da Vampiro», Sousa Pinto, cujo faro comercial tem prova certa no teor de uma carta que lhe será endereçada em 1965 por Lima de Freitas, onde o artista, que substituirá Cândido nas coleções «Vampiro» e «Argonauta», dá conta de três novas capas para a coleção: — «Espero que o estilo utilizado seja do seu agrado — procurei inspirar-me de algumas capas que me mostrou este ano, feitas na Inglaterra para os romances de A. Christie; se gostar fico muito satisfeito por assim ter podido corresponder aos seus desejos.»
O caso da fotografia misteriosa, Erle Stanley Gardner, Colecção Vampiro, n.º 16, Livros do Brasil, 1948, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel e colagem, 21 x 16 cm
O falcão de Malta, Dashiell Hammett, Colecção Vampiro, n.º 34, Livros do Brasil, 1950, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel e colagem, 21 x 16 cm
O caso do gato do porteiro, Erle Stanley Gardner, Colecção Vampiro, n.º 40, Livros do Brasil, 1950, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
O último caso de Trent, E. C. Bentley, Colecção Vampiro, n.º 41, Livros do Brasil, 1950, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel e colagem, 21 x 16 cm
A porta do meio, Ellery Queen, Colecção Vampiro, n.º 44, Livros do Brasil, 1950, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
O caso da sobrinha do sonâmbulo, Erle Stanley Gardner, Colecção Vampiro, n.º 46, Livros do Brasil, 1951, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
Acidente ou crime?, James Hilton, Colecção Vampiro, n.º 50, Livros do Brasil, 1951, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
O insuspeito, Charlotte Amstrong, Colecção Vampiro, n.º 66, Livros do Brasil, 1952, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
A mão decepada, Joel Townsley Rogers, Colecção Vampiro, n.º 85, Livros do Brasil, 1954, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
The red right hand, Joel Townsley Rogers, Pocket Book, n.º 385, 1945
O Santo no mar alto, Leslie Charteris, Colecção Vampiro, n.º 86, Livros do Brasil, 1954, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
O homem do fato castanho, Agatha Christie, Colecção Vampiro, n.º 100, Livros do Brasil, 1955, Cândido Costa Pinto, guache sobre papel, 21 x 16 cm
«Um homem complicado», um autorretrato de Cândido Costa Pinto, de 1947, pode bem ser um título justo para a sua vida e obra. Aos 18 anos, uma saúde frágil será marcada pela tuberculose que o atormentará durante 10 terríveis anos. Será revertida por um colete, adquirido a um refugiado polaco, adornado de símbolos mágicos de todas as religiões do mundo, em zinco e cobre, que terão uma ação benfazeja sobre os bacilos da doença e o tornarão um místico versado nos princípios de Krishnamurti e praticante de yoga. Cândido, estudioso apurado da técnica de pintura a óleo, vai publicar no Primeiro de Janeiro, em 1949, a solução para o conhecido «problema de Van Eyck», a saber, a «reconstituição da matéria pictural do genial criador da Escola Nederlandesa, depois de se terem frustrado as experiências e estudos de pintores de todo o mundo.» Associado à terceira geração modernista, Cândido pertence a um dos dois grupos surrealistas, o mais antigo, onde pontuam António-Pedro e Vespeira. Mas é repudiado pelas duas facções à conta da sua participação em exposições e prémios do SNI. A colagem ao Estado Novo é intolerável para os pressupostos revolucionários do Surrealismo português e o incompreendido e rejeitado Cândido acabará por se exilar no Brasil em 1962.
Cândido assegura ainda as capas da Vampiro Magazine, uma pequena revista mensal influenciada pela referencial Ellery Queen’s Mystery Magazine e que apresenta contos policiais e uma miríade de ensaios, recensões, notícias internacionais e desafios ao leitor, à volta do universo da literatura policial. Sairão 24 números, entre março de 1950 e fevereiro de 1952. Além da sua colaboração gráfica com a editora Livros do Brasil, que inclui as 32 primeiras capas da lendária «Colecção Argonauta», Cândido tem obra gráfica de particular interesse para o Almanak Silva. É um prolífico criador de selos para os CTT. Desenha 29 séries, entre 1949 e 1972, colaboração intensa que fica a dever-se, também, à admiração e amizade que Martins Barata, diretor artístico dos Correios, lhe dedica. Na revista Vida Mundial Ilustrada, entre 1941 e 1942, fará a caricatura dos figurões da política mundial num registo que, segundo o historiador de desenho humorístico Osvaldo de Sousa, combina o grotesco e o onírico, esbatendo as fronteiras entre a sua pintura e o desenho de humor. Terá sido dele a última caricatura de Salazar, autorizada pela Censura.
Fontes
Crime e Castigo, catálogo, Jorge Silva, Arranha céus, 2019
Cândido Costa Pinto, Beckert D’Assumpção, coleção Artistas portugueses do século XX, Empresa Nacional de Publicidade, 1966
Cândido Costa Pinto: Retrospectiva 1911-1977, APOM – Associação Portuguesa de Museologia, 1995. Textos de Lima de Freitas, Maria Rosa Figueiredo e Osvaldo Sousa
paulasimoesblog.wordpress.com
coleccaoargonauta.blogspot.com
en.wikipedia.org/wiki/Whodunit (definição e história do termo Whodunit)
A Biblioteca Silva é uma biblioteca privada que se dedica ao colecionismo e difusão da história da ilustração portuguesa.
«Nuvens», história de José de Lemos, «Página Infantil», Diário Popular, 16 de janeiro de 1962
A «Página Infantil» marcará uma das mais frutuosas colaborações de José de Lemos no Popular, iniciada a 8 de outubro de 1942, duas semanas depois do arranque do jornal. Herdeira direta das experiências do artista no suplemento «Acção Infantil», datado do ano anterior, a nova página para crianças será presença regular do Popular durante décadas. José de Lemos (Lisboa, 1910-1995), um dos mais fascinantes e prolíficos ilustradores e cartoonistas portugueses, tem um papel relevante na literatura e ilustração para crianças. Trabalhará ininterruptamente no vespertino Diário Popular, desde o primeiro número, de 22 de setembro de 1942 até ao derradeiro, de 28 de setembro de 1991. Em entrevista à escritora Soledade Martins, incluída no livro Inquérito ao Livro Infantil, em 1980, Lemos contará:
P.— Há muitos anos que a «Página Infantil» do Diário Popular é orientada pelo José de Lemos. Que recordações guarda desse trabalho?
R.— Sim, há muitos anos. Mas esteve para morrer à nascença, essa minha orientação. E se continuei a orientá-la, devo-o a um jornal literário que se publicava na altura das minhas primeiras páginas. É que o bom público adulto desse tempo chocou-se com o meu estilo. O tal humor, escrever a brincar. Esse público protestou, escrevendo ao director do jornal, por eu não dar lições de moral, não falar na História Pátria e não sei o que mais. O director, apesar de meu amigo, concordou com esse público e já se preparava para me despachar quando surgiu esse jornal literário afirmando que eu era uma excepção no panorama da literatura infantil.
A ausência de paternalismo e propaganda ideológica da «Página Infantil» vai apresentar uma salutar alternativa ao escapismo bedéfilo ou ao proselitismo nacionalista das revistas infantojuvenis e às tolas histórias da Editorial Majora que ganham, ao longo dos anos quarenta, uma asfixiante preponderância na edição de livros para crianças.
A primeira «Página Infantil», Diário Popular, 8 de outubro de 1942
«Página Infantil», Diário Popular, 26 de abril de 1946
«Página Infantil», Diário Popular, 11 de janeiro de 1958
«Página Infantil», Diário Popular, 22 de setembro de 1959
«Distribuir prospectos», história de José de Lemos, «Página Infantil», Diário Popular, 27 de dezembro de 1958
«A gravata horrorosa», história de José de Lemos, «Página Infantil», Diário Popular, 3 de janeiro de 1959
«O forreta e as peras «Página Infantil», Diário Popular, 25 de agosto de1959
«Os gatos da senhora Miquelina», «Página Infantil», Diário Popular, 6 de junho de 1951
«O zézito já tem apetite», «Página Infantil», Diário Popular, 11 de abril de 1961
«O senhor Afrânio Bigorna foi comprar um canário», história de Ruy Miguel, «Página Infantil», Diário Popular, 16 de abril de 1969, guache sobre papel, 25 x 15,5 cm
«Para obra bem feitinha só mestre Tesouralinha», história de Fausto Denis, «Página Infantil», Diário Popular, 12 de novembro de 1969, guache sobre papel, 25 x 19 cm
«Moradia-aquário vende-se», história de Ruy Miguel, «Página Infantil», Diário Popular, 7 de outubro de 1970, guache sobre papel, 22 x 23,5 cm
O percurso editorial e gráfico da «Página Infantil» é riquíssimo. Há o Doutor Sabichão, o crónico cientista distraído da época, abundante nos primeiras edições. Há «As aventuras do saloio Matias e do cigano careta», tira cómica dos primeiros tempos. E largas centenas de textos e bonecos de uma das suas mais felizes rubricas, «Hoje há palhaços», onde Lemos escreve e desenha pequenos episódios em que um par ou trio de palermas de nariz vermelho e nomes carregados de aliterações desfiam historinhas absurdas que alternam entre a cândida tolice e a malícia espertalhona. E há colaborações de escritores e poetas de nomeada como Leonel Neves ou Else Trindade. Maria da Luz Ribeiro Moita, jornalista e sua colega no Popular, e com quem fará o seu último livro ilustrado, Histórias de Criar Bicho, escreverá cerca de trezentas histórias na «Página Infantil», com vários pseudónimos.
Hoje há palhaços
— Olha o senhor engenheiro-técnico-piro-técnico-canalizador.
Que faz Vossa Excelentíssima Excelência aqui, neste sítio, parado, quieto, tão quieto que, mal comparado, até parece a estátua de uma pessoa e não uma pessoa propriamente dita?
— Estou à espera do meu empregado, o seu Pimenta.
Mandei-o receber uma conta a um sujeito que me deve vinte e cinco mil escudos e cinquenta e cinco centavos.
— Vinte e cinco mil escudos e cinquenta e cinco centavos?
— Sim, senhor, vinte e cinco mil escudos e cinquenta e cinco centavos. É a conta de uma canalização técnica-pirotécnica que eu lhe fiz. Olhe, lá vem ele!
— Ele quem?
— O Pimenta.
— Viva o patrãozinho, o senhor engenheiro-técnico-pirotécnico-canalizador. E viva ipso-facto, vice-versa e paralelamente esse senhor aí.
— Oiça, seu Pimenta, o sujeito pagou a conta?
— Saiba o senhor engenheiro-técnico-pirotécnico-canalizador que pagou, mas não pagou a conta toda. Não tinha o dinheiro todo e pagou metade.
— É uma pessoa honesta, sim, senhor. Não pagou a conta toda mas pagou metade.
— Pois é. Eu disse a ele: —Tenho aqui uma conta do senhor engenheiro-técnico-pirotécnico-canalizador para Vossa Excelentíssima Excelência pagar. Para Vossa Excelentíssima Excelência pagar se fizer esse obsequioso obséquio. E ele disse a eu: — Seu Pimenta, eu devo uma conta ao senhor engenheiro-técnico-pirotécnico-canalizador, sim, senhor. Mas não a posso pagar toda. E eu disse a ele: — São vinte e cinco mil escudos e cinquenta e cinco centavos. E ele disse a eu: — Pois então vamos partir a conta que está aí escrita ao meio. Você leva uma metade e eu fico a dever a outra metade. Aqui tem o seu Pimenta cinquenta e cinco centavos.
«Hoje há palhaços», história de José de Lemos, «Página Infantil, Diário Popular», 7 de maio de 1969
A posição da «Página Infantil» no jornal é bastante irregular, trocando de dia e de suplemento com frequência. Inicia-se ao número 16 do Popular, ainda em 1942. Sai à sexta-feira nos anos 50, fixa-se às terças no suplemento «Volta ao Mundo» a partir de 61, e andará pelas quartas-feiras em meados da década. Reaparece na última página do «Sábado Popular» em 1980, já sem o esplendor antigo: sobram os desenhos dos pequenos leitores («Artistas de palmo e meio») e falta Lemos, reduzido à ilustração de um conto, geralmente escrito por Else Trindade. Pelo meio, a «Página» mudará de nome: o distraído Doutor Sabichão volta, repescando os miúdos já graúdos e dá nome a suplemento de quatro ou oito páginas, a partir de 7 de janeiro de 1972. As histórias de primeira página são escritas por Magda Sobral, Else Trindade, Luísa Ducla Soares e António Torrado, ilustradas, rotativamente, por Lemos e Emundo Tenreiro, diretor gráfico do Popular. No cabeçalho do suplemento há espaço para uma assinatura de posse, sinal para o colecionismo e a memória futura, palpável, de um passado feliz.
«O Doutor Sabichão», Diário Popular, 7 de janeiro de 1972
«O Doutor Sabichão», Diário Popular, 16 de novembro de 1973
José de Lemos e Edmundo Tenreiro no Bairro Alto, 1967
Em 1985, primeiro como suplemento de 16 páginas, mais tarde como página única, vai chamar-se «Pimba!», rótulo ingrato para os pergaminhos da «Página» e onde Lemos já não tem a mão vigorosa de outrora. Inventará regularmente rubricas interativas, das que apelam ao lápis do leitor para unir pontos e revelar imagens misteriosas, ou para apontar diferenças em bonecos aparentemente iguais. Com a simplicidade de sempre, os desenhos são também exemplo do fantástico jogo de linha e mancha que marca toda a obra do artista. A meio dos anos 70 Lemos alterará o registo das suas ilustrações para os contos. Os densos guaches cinzentos dos anos sessenta são agora vibrantes cores de mancha solta, ainda em guache, acompanhadas irregularmente pela tinta da china. O amor devotado pelo artista aos seus «bonecos» para crianças revela-se numa entrevista de 1988. Ao ser inquirido sobre os seus trabalhos preferidos, Lemos aponta três páginas do Diário Popular, datadas de 1955, 1956 e 1957. Ainda a preto e branco, são todas exemplares da «Página Infantil».
«O Vadinho», história de Magda Sobral, «O Doutor Sabichão», Diário Popular, 28 de janeiro de 1972, guache sobre papel, 32,5 x 29 cm
«Férias na aldeia», história de Else Trindade, «Pimba!», Diário Popular, 7 de março de 1987, tinta da china e guache sobre papel, 30,5 x 22 cm
«Cruzador à vista», história de Ruy Miguel, «Pimba!», Diário Popular, 3 de outubro de 1987, tinta da china e guache sobre papel, 30,5 x 21,5 cm
Em 1985, primeiro como suplemento de 16 páginas, mais tarde como página única, o espaço dedicado às crianças vai chamar-se «Pimba!», rótulo ingrato para os pergaminhos da «Página» e onde Lemos já não tem a mão vigorosa de outrora. Inventará regularmente rubricas interativas, das que apelam ao lápis do leitor para unir pontos e revelar imagens misteriosas, ou para apontar diferenças em bonecos aparentemente iguais. Com a simplicidade de sempre, os desenhos são também exemplo do fantástico jogo de linha e mancha que marca toda a obra do artista. A meio dos anos 70 Lemos alterará o registo das suas ilustrações para os contos. Os densos guaches cinzentos dos anos sessenta são agora vibrantes cores de mancha solta, ainda em guache, acompanhadas irregularmente pela tinta da china. O amor devotado pelo artista aos seus «bonecos» para crianças revela-se numa entrevista de 1988. Ao ser inquirido sobre os seus trabalhos preferidos, Lemos aponta três páginas do Diário Popular, datadas de 1955, 1956 e 1957. Ainda a preto e branco, são todas exemplares da «Página Infantil».
Fontes
José de Lemos, catálogo, Jorge Silva. Lisboa: Arranha-céus, 2022
«Riso Amarelo» e Outros «Cartoons», José de Lemos, coleção Humor Fabricado em Portugal. Lisboa: Estaminé – Estúdio de Arte Comercial, 1976
Inquérito ao Livro Infantil, «Entrevista com José de Lemos», Soledade Martinho Costa. Lisboa: edição da autora, 1980
Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, Leonardo De Sá e António Dias de Deus. Lisboa: Edições Época de Ouro, 1999
As ilustrações soltas foram restauradas digitalmente.
Agradecimentos a António Prates pela cedência dos originais presentes no post e a Edmundo Tenreiro pela fotografia, de autor desconhecido, tirada no Bairro Alto.
Autorretrato em «A baixo assinado», Diário Popular, 26 de agosto de 1973
Capista acidental de temas e autores ao longo das décadas de 20 e 30, João Carlos (Ílhavo, 1899-Lisboa, 1960) seria artista «residente» das Edições Gleba na década seguinte. Entre 1942 e 1948, a sua produção espalha-se por várias coleções da editora, como a «Colecção Romances Célebres» (onde deixa os seus melhores trabalhos) a «Coleção Contos e Novelas», a «Romancistas de Hoje» e outras que se seguirão a meio da década, como a «Colecção Homo», dedicada a memórias e biografias, «Obras de Oscar Wilde» e as «Novelas Policiais Gleba».
As portentosas composições da «Coleção Romances Célebres» e «Romancistas de Hoje» contrastam bastante com o desenho linear que celebrizou o artista. Na realidade, a linha continua lá, nos degradês em que a mancha de cor pura faz a transição para a cor seguinte. À maneira de muitos ilustradores da época, João Carlos é exímio na modelação de volumes através do contraste cromático, onde o branco do papel joga especial relevo, mas apresentará uma gramática tipográfica bastante heterogénea no design das capas. Embora não assinadas, as capas das «Novelas Policiais Gleba» podem ser-lhe facilmente atribuídas pelas semelhanças de composição, desenho e jogo de cores.
«Romances Célebres» terá sido a primeira coleção, iniciada ainda no mesmo ano da fundação da editora, por Aurélio Cruz, Lobo Vilela e Isolino Caramalho. Em contra-corrente à política e cultura oficiais do Estado Novo, a Edições Gleba irá publicar obras do movimento neorrealista, clássicos russos e revelar autores desconhecidos da Europa do Leste como os romenos Cezar Petrescu e Liviu Rebreanu. Na década de 50, a Gleba iniciará uma emblemática coleção de livros de bolso, «Os Livros das Três Abelhas», dirigida por Aurélio Cruz e Victor Palla. A coleção solicitará grandes artistas gráficos da época como Palla, António Domingues ou Sebastião Rodrigues, mas já não contará com João Carlos, que fecha esta seleção de trabalhos com o livro Vem aí a guerra, da Gazeta do Sul Editora, da qual foi colaborador regular nos anos que antecederam a Gleba. Nas fantasmagóricas cenas que podemos aparentar ao chiaroscuro da Art Déco, João Carlos constrói uma das mais sólidas identidades visuais da edição livreira dos anos 40.
«Cão primido», marcador e comprimido sobre papel, Portugália editora, s. d.
«A Siné, que sugeriu este livro». A dedicatória, na página 3 do livro Cão Pêndio, confirma a influência e a afinidade concetual com as obras do cartoonista francês Siné (1928-2016) que publica vários livros, como Portée de Chats e The French Cat, datados de 1956 e 1958, com trocadilhos à volta do seu animal predileto, o gato (chat/cat). Ao contrário de Siné que flagela a classe política e os costumes franceses com plena liberdade de expressão, Tóssan (Vila Real de Santo António, 1918- Lisboa, 1991), cuja repulsa pela ditadura é bem conhecida, evita o olho vigilante da censura portuguesa com trocadilhos de caráter lúdico, embora em alguns desenhos se vislumbre o comentário político, caso do «Cão pitalista». À volta da mistura das idiossincrasias caninas e humanas, Cão Pêndio cumpre um salutar intervalo na rotina do humorista Tóssan em revistas e jornais, uma oportunidade para esmiuçar variações possíveis sobre um tema único, prática comum a grandes humoristas gráficos como Siné, Ronald Searle ou Ralph Steadman.
A deliciosa coleção de 54 trocadilhos foi editada na Portugália Editora com direito a campanha publicitária no «Magazine» do Diário de Lisboa onde, desde há dois anos, Tóssan se multiplica em ilustrações para os suplementos «Juvenil» e «Magazine». Tóssan é um excelente ilustrador animalista, mas reduz os canídeos do seu Cão Pêndio a um híbrido de raça indefinida, num traço rápido e anatomicamente descuidado a que raramente acrescentará atributos ou artefactos humanos.
Cão Pêndio, publicidade, Diário de Lisboa, 26 de dezembro de 1959
Cão Pêndio, publicidade, «Magazine», Diário de Lisboa, 9 de janeiro 1960
Almeida Santos, que virá ser um destacado político do Partido Socialista, exerce advocacia em Lourenço Marques, mas conta com amigos em Lisboa para as suas aventuras editoriais. Num cartão de 1959, dirigido a Tóssan, comenta com amargura e humor as peripécias do seu censurado livro Rã no Pântano e augura sucesso a Cão Pêndio. Ilustrados por Tóssan, são ambos publicados no mesmo ano.
Meu caro Tóssan:Recebi o teu cão pêndio. E cheguei à conclusão de que ainda és mais cão pleto e maca cão do que eu julgava. Orgulho-me de ti. Mostrarei a tuti quanti este bilhete postal do teu génio. O meu Gavroche fica menos triste. Continua.
E manda-me 20 ou trinta exemplares que eu vendo-tos num ápice.A nossa obra comum [Rã no Pântano] parece que estava fazendo carreira. Mas parou perto. Paciência. Seremos menos populares mas mais perigosos. Santo Deus: o que havia de mal no livrinho? Creio que já se atingiu o afinar de censurar a própria veleidade de pensar. Não importa o quê. Apetece-me vomitar o que há de Pátria dentro da minha alma.
Qualquer dia far-lhes-emos a pirraça de os obrigar a retirar outro. Vingança de chinês, única possível.Um grande abraço de parabéns pelo teu êxito. Continua. E vai-te lembrando de nós.Abraços de todos. Teu, dedicado,
Almeida Santos
Cão Pêndio, Portugália Editora, 1959
Cão Pêndio, capa, tinta-da-china, grafite e colagem sobre papel, 16,2 x 30,2 cm, 1959
«Cão pitalista», Cão Pêndio, marcador sobre papel, Portugália Editora, s. d., 14 x 14 cm
«Cão selho de administra cão», Cão Pêndio, marcador sobre papel, Portugália Editora, s. d., 13,7 x 21 cm
«Cão serva», Cão Pêndio, marcador sobre papel, Portugália Editora, s. d., 10,3 x 8,7 cm
«Cão fusão», Cão Pêndio, marcador sobre papel, Portugália Editora, s. d., 14 x 17,5 cm
«Cão zinheiro», Cão Pêndio, marcador sobre papel, Portugália Editora, s. d., 13,8 x 9,5 cm
[Cão certo], marcador sobre papel, s.d. (pelos detalhes do nariz e dedos das patas posteriores, será um desenho muito posterior, dos anos 70 ou 80)
«Cão certo», Cão Pêndio, Portugália Editora, 1959
Em 1985, uma efeméride redonda da Companhia de Seguros Fidelidade, a que o cão do símbolo dá pretexto ideal, traz de volta o compêndio canino. A 26 anos de distância, Tóssan redesenha para Fidelidade 1835 as velhas piadas da edição original do Cão Pêndio e acrescenta outras tantas que o ar dos tempos reclama, focadas agora na libertinagem amorosa e na consciência de fenómenos ambientais como a poluição. Desde meados dos anos 70 Tóssan mostra, nos seus livros para crianças com textos do amigo Leonel Neves, uma representação gráfica mais sofisticada, mas os desenhos de Fidelidade 1835 mantêm-se fiéis aos grafismos de 1959. Numa «Introdu cão» manuscrita que não constará na publicação, Tóssan explora exaustivamente o filão canino em trocadilhos fáceis que relembram a sua produção literária, habitualmente carregada de aliterações.
Felizmente há luar, Luís de Sttau Monteiro, Contemporânea n.º 34, 3.ª edição, Portugália, 1962
A asfixiante extensão da ditadura do Estado Novo vai proporcionar uma sobrevida à estética neorrealista, que, determinante nos anos de 40 e 50, vai prolongar-se até abril de 1974. Romances e novelas clássicos da literatura neorrealista, cujos enredos assentam quase sempre no mundo rural, terão definição certa de Alves Redol em Fanga: «Senhores vivendo da terra sem nada lhe darem. Servos fecundando a terra sem nada receberem». O exemplo mais flagrante será o da coleção Livros de Bolso Europa-América, publicada às vésperas do 25 de Abril, com desenhos de Dorindo Carvalho. Também a obra gráfica de João da Câmara Leme (Beira, Moçambique, 1930-Lisboa, 1983) acompanha este prolongamento anacrónico, em capas de várias coleções da Portugália, com maior expressão na Contemporânea, pela década de 60. Serão grafismos rudes, ásperos, de contorno grosso, em meios tons depressivos ou em decorativo modo de vitral, mais luminoso, que servirão canónicas ficções de autores portugueses ou, mais raramente, obras de estrangeiros «malditos», como Pasolini, ou de temática antifascista.
Pelo seu tempo e referências, Câmara Leme é tributário do chamado Estilo Internacional, corrente estética vinda da Europa Central. As imagens sintetizadas, a proliferação de signos gráficos recontextualizados e uma tipografia mecânica sóbria, de uso recorrente a letras minúsculas e layout assimétrico, frequentam a maior parte da sua produção gráfica da época. Mas Câmara Leme também é capaz, nas suas capas de inspiração neorrealista, de uma fusão puramente artesanal entre imagem e palavra, não carecendo de técnicas pesadas como o óleo para revelar o artista gráfico completo, a um mesmo tempo grafista, ilustrador e pintor. Em tom mais ligeiro, uma outra coleção, as Antologias Universais, apresenta também composições, de inspiração muralista, onde Obras primas da novela contemporânea apresentará um «Cristo operário», em grafismo vitralista, a marca exemplar de Câmara Leme. O tom geral aproxima-se, no entanto, da dolência clássica das capas de Manuel Ribeiro de Pavia, um ilustrador neorrealista referencial. Ao olho vigilante da Censura, mais atento à literatura e às artes plásticas, não fará mossa a mansa resignação que marca sistemicamente a ilustração editorial do Neorrealismo português.
Quatro ilustrações num tosco chiaroscuro ilustram a crónica «Os que não passam de figurantes» subtitulada ainda como «reportagem sentimental». Entre o cínico e o terno, o texto do autor evoca os sonhos e as frustrações da chusma anónima que ciranda no plateau à volta das estrelas. José Gomes Ferreira, redator principal da novel revista Imagem, faz contraponto, logo na entrada do primeiro número, em 10 de maio de 1930, à interminável galeria de retratos das glamourosas divas das fitas americanas e europeias que saturam a capa e o miolo do magazine. As ilustrações, de sabor clownesco, pertencem a Bernardo Marques (Silves, 1899-Lisboa, 1962).
Sem a acidez cómica de Jorge Barradas ou a morbidez de António Soares, Marques, benévolo cronista das gentes que sobem e descem o Chiado, será desafiado para cronicar graficamente os alvores de uma sedutora indústria que irá alimentar dezenas de revistas especializadas, no fecho dos vintes e ao longo da década seguinte. Ilustrações suas andarão pela Imagem (também na primeira série, de 1928), Kino e Girassol, só para nomear o filão cinéfilo. Com a companhia intermitente dos «bonecos» de Olavo D’Eça Leal, Carlos Botelho, Carlos Rocha e Paulo Ferreira, Bernardo Marques, volta no número 12 e retoma a liderança ilustrada na segunda série da revista, com presença assídua ao longo dos três primeiros anos, em artigos avulsos, colagens fotográficas e rubricas permanentes. Uma delas, «O Jornal de Actualidades», glosando a escrita de um roteiro fílmico, será um parente cinéfilo dos célebres «Ecos da Semana» do comparsa Botelho. Nem o rato Mickey escapará ao lápis de Marques.
Longe ficarão, lá pelos princípios dos vinte, os seus maneirismos gráficos à maneira do alemão Simplicissimus ou da vienense Secession. O traço dominante nos desenhos da Imagem aproxima-se da sua produção dos anos finais de vinte, de linhas angulosas e sombras de traço cruzado, registo rápido mas certeiro para fixar a avidez citadina pelas fitas dos grandes estúdios americanos e europeus. Marques capricha regularmente na cascata de cenas e personagens, género em que é exímio e evita, deliberadamente, a influência cáustica de Grosz que traz da sua peregrinação de 1929 por Berlim. A clientela lisboeta das fitas, burguesa ou popular, será poupada nas páginas da Imagem.
Apesar da incipiente indústria cinematográfica nacional, a imprensa especializada estreara cedo, em 1917, com a Cine Revista. Confirmando a perda de influência dos palcos do teatro, somam-se vagas de revistas e jornais dedicados à sétima arte, chegando ao cúmulo de uma Crónica Cinematográfica de efémera edição diária. Imitando os magazines cosmopolitas e o seu design tipográfico modernista, raras serão as revistas de cinema que, sem abdicar da opulência fotográfica alimentada pelos estúdios de cinema, concederão papel relevante à ilustração editorial, estabelecendo uma complementar relação entre duas artes de artifício visual. Imagem, dirigida pelo faz-tudo Chianca de Garcia e pelo redator principal José Gomes Ferreira, o futuro escritor e poeta, terá justa reputação pela impecável impressão em rotogravura, apurada colaboração escrita, e as suas causas e campanhas em prol do cinema luso, como a criação de um estúdio nacional.
No cauteloso editorial do primeiro número, Imagem vai repartir salomonicamente incentivos pelo mudo e pelo sonoro, mas acabará por tomar partido por este último, numa questão fraturante que faz correr rios de tinta na imprensa cinematográfica da época. Após 5 anos de publicação quinzenal e trimensal, Imagem tem o seu «The End» ao número 124, a 15 de Agosto de 1935. A colaboração de Bernardo Marques vai rareando até se finar na ilustração de um sucesso estrondoso da RKO, um grotesco macacão de 15 metros chamado… King Kong.
«Cinco cartas que se completam. Os cinemas de província revelados por provincianos», Imagem, n.º 12, 10 de outubro de 1932
«Se Leitão de Barros realizasse A Varanda dos Rouxinois…», Álvaro Gomes, Imagem, n.º 35, 27 de agosto de 1931
«As Grandes vedetas dos desenhos animados: o rato Mickey, o gato Felix e o coelho Oswaldo», Fernanda, Imagem, n.º 40, 1 de novembro de 1941
«O sonho de 1932», Álvaro Gomes, Imagem, n.º 46, 1 de janeiro de 1932
«A Imagem-Filme apresenta O Jornal de Actualidades N.º 2», Caçador de Imagens, Imagem, n.º 55, 4 abril 1932
«A Imagem-Filme apresenta O Jornal de Actualidades N.º 8», Imagem, n.º 61, 4 de junho de 1932
«Os cinemas em que não se fala», Imagem n.º 67, 2 de setembro de 1932
«King-kong! Um macaco de 15 metros de altura que enche de pânico a cidade de Nova York!», Imagem, n.º 96, 5 de janeiro de 1934
Bibliografia
Breve história da imprensa cinematográfica portuguesa, Alves Costa, Cine-Clube do Porto, 1954
Bernardo Marques: Desenho e ilustração anos 20 e 30, José-Augusto França, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982