sábado, 27 de dezembro de 2025

No fundo do baú 60 - Emanuel Lomelino

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A arte, nas suas diversas vertentes e dimensões, é uma actividade intimista que roça, quando não ultrapassa, o egoísmo. Mas este individualismo egocêntrico, que se exige ao criador, não é negativo, antes pelo contrário, é humanista porque permite que as dores da angústia criativa fiquem restritas ao universo da criação.

Aos apreciadores de artes deve ser apresentado o lado mais belo e sereno do objecto artístico, isto é, a arte finalizada.

Pouco importa o número de marteladas falhadas e quantas lascas de pedra rasgaram a pele do escultor, quando estamos diante de um busto. Ninguém quer saber quantas camadas de óleo foram colocadas sobre uma pincelada disforme ou quanto vapor de diluente paira no atelier do pintor, quando estamos a olhar uma tela. Não existe interesse algum no tempo que o escritor perdeu para dar vida à frase mais eloquente ou quantos rascunhos foram atirados ao lixo, quando lemos um livro. Não há relevância na quantidade de vezes que o actor titubeou ou se engasgou nos ensaios, quando estamos e ver um filme ou uma peça de teatro. Não é preciso saber quantas vezes as dançarinas tropeçaram ou erraram os passos nos treinos, quando estamos a assistir a um bailado.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

No fundo do baú 59 - Emanuel Lomelino

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O provérbio popular diz que a esperança é a última a morrer. Já Balzac afirmou que o homem morre pela primeira vez quando perde o entusiasmo.

Juntando, a ambas as frases, todas as minhas distintas mortes, fica provado que o homem perece toda a vida até que a derradeira morte reclame o seu prémio e encerre o assunto de vez.

Contudo, no meio de toda esta filosofia necrológica, levantam-se algumas questões pertinentes:

Entre cada morte existe renascimento ou ressurreição?

Todas as mortes permitem renovação ou apenas ressuscitamento? 

Há alguma morte mais nefasta que as demais?

Até que ponto o acúmulo de mortes não é, em si mesmo, mais uma morte?

Sejam quais forem as respostas a estas perguntas, existem duas garantias absolutas e incontestáveis sobre todas as mortes. As intercalares apenas nos amputam. A definitiva, tal como também disse Balzac: … é mais verdadeira – ela nunca renuncia a nenhum homem.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

No fundo do baú 58 - Emanuel Lomelino

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É no mutismo do silêncio que as vozes ganham clarividência e as palavras vencem a timidez dos grandes públicos.

É na quietude do vazio que os timbres se ajustam às pautas e os verbos glorificam a sagacidade da linguagem.

Simon & Garfunkel alertaram para as conversas que existem na mudez; para os diálogos ouvidos, mas jamais escutados e para a falta de atrevimento em reproduzir-se, vocalmente, tudo o que foi escrito. E isto porque o silêncio pode representar mil palavras; o silêncio pode ser mais significativo que discursos intermináveis; o silêncio pode ser a base do entendimento.

Por tudo isto se diz que “o silêncio também fala”, “o silêncio é de ouro”, “o silêncio é a alma do negócio”.

No entanto, alerto eu, o silêncio não é um lugar feito à medida de todos porque requer isolamento, introspecção e raciocínio, e é incompatível com autofóbicos e claustrofóbicos.

O silêncio é uma seara de pensamentos à espera de serem segados, colhidos, debulhados e transformados em alimento nutritivo, para quem não lhe tem fobia e sabe reconhecer-lhe os benefícios.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

No fundo do baú 57 - Emanuel Lomelino

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Toda a arte é dual. Pode ser objectiva ou arbitrária; inspiradora ou castradora; provocadora ou rasa; alegre ou melancólica; séria ou lúdica; satírica ou insonsa; deliciosa ou intragável; imortal ou efémera; contagiosa ou lacónica; bela ou monstruosa; etc, etc, etc…

Em outras ocasiões é polissémica. Pode ser início, meio e fim; tudo, nada e alguma coisa; abstrata, genérica e indefinida; excêntrica, estranha e rebelde; catarse, prazer e vício; etc, etc, etc…

A arte pode ser tanto e de tantas formas, dependendo de quem a vê e do modo como a entende.

Já foram tantos aqueles que dissertaram sobre a arte que é impossível dizer quem se aproximou mais da verdade. No entanto, para mim, a observação mais pertinente foi feita por Johann Goethe quando disse este quase paradoxo: Não existe meio mais seguro para fugir do mundo do que a arte, e não há forma mais segura de se unir a ele do que a arte.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

No fundo do baú 56 - Emanuel Lomelino

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Planto as sementes dos sossegos de cada instante dócil com a esperança de um abraço inquebrável entre as raízes e a terra fértil. Há um desejo inviolável de frutificar os rebentos da brandura como quem quer muscular a vontade.

Rego os caules de serenidade com as cristalinas águas da calmaria plácida que pacifica os frémitos pulsares da inquietude. Há um segredo por revelar em cada broto que rasga, entre sorrisos e sonhos, o ventre do solo maternal.

Nos limites da inocência, entre a lucidez mansa e a loucura pacata, sussurro palavras meigas e brandas à planta que desponta. Há um aroma meloso a impregnar-se na sensibilidade dos sentidos apurados, como uma essência virgem a deambular no etéreo silêncio de pasmos e espantos.

Por fim colho as flores da solidão, com as pétalas pintadas de paz e céu, de trégua e mar, de nirvana e nada. Enlaço um buquê inteiro com a delicadeza de pai orgulhoso e realizado. Esta primavera, fora de estação, apazigua-me as lágrimas e cicatriza-me os lamentos. Então, condensa-se em mim a honradez da criação e o mundo volta a ser um lugar de pausa e restauro.

Eis-me agricultor de palavras e armistício.