Um Estado que não é sério
Por estes dias muitas famílias açorianas estão a marcar
passagens aéreas para os filhos que estudam no continente, tentando tê-los por
cá nas férias, se não na Páscoa, pelo menos no Verão ou em ambos para os mais
afortunados.
Numa rápida pesquisa, um bilhete ida-e-volta para a Páscoa
ronda os 235 € na SATA e os 228 € na TAP. No Verão, um one way custa
entre 90 € e 140 € euros ao “câmbio” de hoje, tudo isto condicionado por
exames, orais, segundas épocas e outros constrangimentos num drama tão comum a
tantas gerações de açorianos que tiveram a fortuna de ir estudar para fora.
Esta breve introdução surge, como o leitor já terá
percebido, a propósito das alterações ao Subsídio Social de Mobilidade
propostas pelo Governo da República, cuja cereja no topo do bolo é a
recentemente anunciada portaria que impõe, de forma picaresca, a exigência de
situação contributiva regularizada para o cidadão aéromobilizado.
Se todos ansiávamos pela criação de uma plataforma digital
para o processamento dos reembolsos pondo fim à verdadeira via-sacra dos CTT, aliás
um exemplo clássico de como uma privatização consegue destruir uma empresa, o
Estado, esse mau pagador, vem agora dar com uma mão para tirar com a outra.
Como se já não bastasse o famoso tecto máximo dos 600 €, ou a má vontade
persistente em não assumir o custo diretamente com as companhias aéreas,
transferindo o ónus do financiamento para o já magro orçamento do cidadão
insular, os mangas-de-alpaca da República entendem agora que, para ser
ressarcido de um direito legítimo, o cidadão das ilhas deve ter a sua relação
contributiva irrepreensivelmente acertada com o Fisco e a Segurança Social.
Alheios à realidade concreta da vida nas ilhas,
confortavelmente instalados nas sinecuras do eixo Cascais–Lisboa, os ministros
do Estado e o respetivo séquito resolveram tratar os portugueses das ilhas como
presumíveis culpados antes de julgamento, colocando-nos a todos sob a suspeita
de devedores ao Fisco, quando tantas vezes é o próprio Estado quem incumpre com
as Regiões Autónomas e com os cidadãos.
Esta diatribe obtusa e estapafúrdia colide frontalmente com
os princípios constitucionais da igualdade e da continuidade territorial. Mas,
ao que parece, o direito constitucional não é disciplina frequentada pelos
burocratas do ministro Pinto Luz e vale menos do que uma folha de Excel no
Ministério das Finanças.
A Constituição é clara ao determinar que o Estado deve
promover a correção das desigualdades decorrentes da insularidade. O princípio
da continuidade territorial não é um favor, nem uma benesse: é uma obrigação
constitucional destinada a garantir que um português nascido em Ponta Delgada
ou no Funchal tenha as mesmas oportunidades de mobilidade que um português de
Braga ou de Faro.
O modelo atual, recauchutado por esta nova portaria, é uma
aberração administrativa e política. Obriga as famílias insulares a financiar o
Estado e as companhias aéreas durante meses, descapitalizando agregados
familiares já fragilizados, e ainda lhes cola a infamante etiqueta de
caloteiros. Esta portaria é o espelho de um centralismo que ignora
deliberadamente a realidade arquipelágica e é um ato de má-fé política.
Um Estado sério não legisla contra os seus próprios
princípios fundamentais. Um Estado sério não transfere para os cidadãos o ónus
de corrigir desigualdades estruturais que reconhece. Um Estado sério honra a
Constituição não apenas no discurso, mas na prática quotidiana das suas
políticas públicas.
Se estas alterações não forem revertidas, o Subsídio Social
de Mobilidade deixará definitivamente de ser um instrumento de justiça
territorial para se tornar num símbolo de arrogância centralista e de
incumprimento constitucional. E isso não é apenas um problema dos Açores ou da
Madeira. É um problema do Estado português, da qualidade da nossa democracia e
do respeito que tem pelos seus próprios cidadãos.
Boas festas, se for caso disso…

