quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Speakers' Corner 64

Um Estado que não é sério

Por estes dias muitas famílias açorianas estão a marcar passagens aéreas para os filhos que estudam no continente, tentando tê-los por cá nas férias, se não na Páscoa, pelo menos no Verão ou em ambos para os mais afortunados.

Numa rápida pesquisa, um bilhete ida-e-volta para a Páscoa ronda os 235 € na SATA e os 228 € na TAP. No Verão, um one way custa entre 90 € e 140 € euros ao “câmbio” de hoje, tudo isto condicionado por exames, orais, segundas épocas e outros constrangimentos num drama tão comum a tantas gerações de açorianos que tiveram a fortuna de ir estudar para fora.

Esta breve introdução surge, como o leitor já terá percebido, a propósito das alterações ao Subsídio Social de Mobilidade propostas pelo Governo da República, cuja cereja no topo do bolo é a recentemente anunciada portaria que impõe, de forma picaresca, a exigência de situação contributiva regularizada para o cidadão aéromobilizado.

Se todos ansiávamos pela criação de uma plataforma digital para o processamento dos reembolsos pondo fim à verdadeira via-sacra dos CTT, aliás um exemplo clássico de como uma privatização consegue destruir uma empresa, o Estado, esse mau pagador, vem agora dar com uma mão para tirar com a outra. Como se já não bastasse o famoso tecto máximo dos 600 €, ou a má vontade persistente em não assumir o custo diretamente com as companhias aéreas, transferindo o ónus do financiamento para o já magro orçamento do cidadão insular, os mangas-de-alpaca da República entendem agora que, para ser ressarcido de um direito legítimo, o cidadão das ilhas deve ter a sua relação contributiva irrepreensivelmente acertada com o Fisco e a Segurança Social.

Alheios à realidade concreta da vida nas ilhas, confortavelmente instalados nas sinecuras do eixo Cascais–Lisboa, os ministros do Estado e o respetivo séquito resolveram tratar os portugueses das ilhas como presumíveis culpados antes de julgamento, colocando-nos a todos sob a suspeita de devedores ao Fisco, quando tantas vezes é o próprio Estado quem incumpre com as Regiões Autónomas e com os cidadãos.

Esta diatribe obtusa e estapafúrdia colide frontalmente com os princípios constitucionais da igualdade e da continuidade territorial. Mas, ao que parece, o direito constitucional não é disciplina frequentada pelos burocratas do ministro Pinto Luz e vale menos do que uma folha de Excel no Ministério das Finanças.

A Constituição é clara ao determinar que o Estado deve promover a correção das desigualdades decorrentes da insularidade. O princípio da continuidade territorial não é um favor, nem uma benesse: é uma obrigação constitucional destinada a garantir que um português nascido em Ponta Delgada ou no Funchal tenha as mesmas oportunidades de mobilidade que um português de Braga ou de Faro.

O modelo atual, recauchutado por esta nova portaria, é uma aberração administrativa e política. Obriga as famílias insulares a financiar o Estado e as companhias aéreas durante meses, descapitalizando agregados familiares já fragilizados, e ainda lhes cola a infamante etiqueta de caloteiros. Esta portaria é o espelho de um centralismo que ignora deliberadamente a realidade arquipelágica e é um ato de má-fé política.

Um Estado sério não legisla contra os seus próprios princípios fundamentais. Um Estado sério não transfere para os cidadãos o ónus de corrigir desigualdades estruturais que reconhece. Um Estado sério honra a Constituição não apenas no discurso, mas na prática quotidiana das suas políticas públicas.

Se estas alterações não forem revertidas, o Subsídio Social de Mobilidade deixará definitivamente de ser um instrumento de justiça territorial para se tornar num símbolo de arrogância centralista e de incumprimento constitucional. E isso não é apenas um problema dos Açores ou da Madeira. É um problema do Estado português, da qualidade da nossa democracia e do respeito que tem pelos seus próprios cidadãos.

Boas festas, se for caso disso…

 

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Speakers' Corner 63

O “bater asas” e a arte de pousar

Nos últimos dias, as páginas deste jornal foram palco de um animado debate em torno do estado do ensino na Região, tendo como epicentro a Escola Secundária Domingos Rebelo.

Num longo texto, infelizmente anónimo e algo caótico na argumentação, um grupo de pais levantou, ainda assim, questões pertinentes sobre o funcionamento da escola e os seus impactos na avaliação e, sobretudo, na motivação dos alunos. Seguiu-se uma reação talvez excessivamente emotiva por parte da Associação de Pais, compreensível quando estão em causa pais e filhos, culminando na sua demissão e, posteriormente, uma réplica particularmente interessante de um ex-aluno, centrada naquele que me parece ser o verdadeiro cerne da questão: o dilema permanente entre o “bater asas” para fora da Região ou o permanecer na ilha, tantas vezes percepcionado como uma forma de estagnação.

Não conheço pessoalmente nenhum dos protagonistas deste debate. Escrevo apenas como observador da coisa pública e como pai de duas adolescentes que frequentam este mesmo estabelecimento de ensino (9.º e 11.º anos). Essa dupla condição confere-me, creio eu, a legitimidade para assinalar algumas questões que considero particularmente relevantes nesta troca de argumentos.

Mais do que me deter nas dimensões mais domésticas da polémica, horários, intervalos, currículos, modelos de avaliação, ou mesmo a responsabilidade individual e a motivação da classe docente, parece-me que o essencial reside numa reflexão mais ampla sobre o estado do ensino e da educação na Região.

Numa sociedade estruturalmente pobre, com baixos índices sociais e onde uma parte significativa da população não ultrapassa o 6.º ano de escolaridade, o ensino deveria ser encarado como o principal motor de desenvolvimento e de mobilidade social. No entanto, persistimos numa obsessão com exames, avaliações, rankings e estatísticas que pouco dizem sobre o percurso individual de cada aluno e quase nada sobre a sua formação enquanto cidadãos conscientes e participativos.

À família cabe um papel fundamental na transmissão de valores, no sentido de responsabilidade e no respeito pelo rigor do percurso académico, não como uma corrida à excelência traduzida em médias, quadros de honra ou diplomas acumulados, mas como um caminho de vida. O início de um trajeto onde, muitas vezes, mais importantes do que as notas ou os “canudos” são as relações que se constroem com colegas, professores e com a comunidade em geral.

À escola, e em particular aos professores, compete dotar os alunos de instrumentos intelectuais que lhes permitam compreender e questionar o mundo. Num tempo em que o ChatGPT é utilizado com mais frequência do que uma caneta BIC, talvez seja mais importante ensinar a formular boas perguntas do que a decorar respostas ou resolver equações. A escola não deve ser uma competição orientada por rankings e métricas, mas um espaço de formação de pessoas autónomas, criativas, críticas e empreendedoras.

Mas talvez a maior responsabilidade recaia sobre os sucessivos governos que, ao longo de cinco décadas de autonomia política, falharam na construção de um verdadeiro ecossistema educativo, capaz de ligar de forma consequente a escola ao território e de gerar riqueza e desenvolvimento sustentado para a Região.

Dar “asas” aos jovens é importante. Mas talvez mais importante ainda seja ensinar-lhes a delicada arte de pousar. O sucesso não se mede apenas em euros, cargos, promoções ou diplomas, mas também na capacidade de parar, observar, apreciar a subtileza do que nos rodeia e valorizar as memórias que construímos com aqueles que encontramos pelo caminho, para que “bater asas” não seja apenas partir, mas também regressar.

Talvez o maior ensinamento de todos seja compreender que, em vez de correr atrás da vida, temos de aprender a pará-la para verdadeiramente a viver. E talvez o maior luxo que a ilha nos ofereça seja, precisamente, dar-nos tempo para o fazer.

 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Speakers' Corner 62

Os Açores e a Doutrina Trump

Em dezembro de 1823, James Monroe, quinto presidente dos Estados Unidos, apresentou ao Congresso uma declaração que ficaria conhecida como Doutrina Monroe. A fórmula “América para os americanos” traduzia a reafirmação de um isolacionismo já insinuado por George Washington e desenvolvido por Thomas Jefferson, que concebera a ideia do “hemisfério americano”.

Dois séculos depois, a nova Estratégia Nacional de Segurança, um documento de pouco mais de trinta páginas divulgado na última semana, marca o regresso dessa matriz conceptual. Os EUA deixam de se apresentar como o “polícia global” a que nos habituámos desde a Segunda Guerra Mundial para, num espírito America First, colocarem o interesse nacional acima de qualquer compromisso multilateral. A prioridade passa a ser o reforço interno, assente na autonomia industrial, tecnológica e energética, reduzindo dependências externas, sobretudo da China, e protegendo cadeias de produção consideradas críticas, das novas tecnologias ao armamento.

No plano geopolítico, a estratégia recentra-se no “Hemisfério Ocidental”, recuperando de forma explícita a lógica monroísta. As Américas e o Caribe são classificadas como regiões vitais, com foco no controlo migratório, no combate ao narcotráfico e na limitação da influência de potências externas. Trata-se de uma mundivisão de blocos e zonas de influência, muito próxima, aliás, da teoria de “espaço vital” de Putin.

Quanto à Europa, o documento critica a gestão continental da imigração e da demografia, insinuando que vários governos estão a comprometer a própria “identidade civilizacional” europeia. Afirma mesmo que, em menos de vinte anos, a Europa poderá ser irreconhecível do ponto de vista político e étnico. Concorde-se ou não com esta leitura, ela revela um afastamento estratégico da sua fronteira ocidental que a União Europeia dificilmente poderá ignorar, tanto mais que, a oriente, há uma Ásia que se agiganta.

Este novo ordenamento do tabuleiro internacional coloca dilemas, mas também oportunidades, a Portugal e, de forma ainda mais acentuada, aos Açores, divididos entre uma orientação plenamente europeia ou uma vocação, ainda que por vezes tímida, assumidamente atlântica.

A verdade é que a geografia não muda com as conjunturas políticas ou ideológicas. E é precisamente essa constância que obriga a uma afirmação mais plena da centralidade atlântica do arquipélago. Durante décadas, a Base das Lajes foi encarada quase como inevitabilidade histórica, envolta numa relação romantizada com os EUA, marcada pela cooperação militar e pela nostalgia da emigração. Mas a nova-velha Doutrina Trump rompe com sentimentalismos e as alianças passam a ser tratadas como contratos comerciais, substantivamente negociáveis e passiveis de reversão.

Face a esta realidade, torna-se indispensável que qualquer negociação entre Lisboa e Washington conte com participação açoriana efetiva e qualificada e não apenas como observador turístico das reuniões da bilateral, mas como interlocutor estratégico imprescindível. Em paralelo, o arquipélago deve ser pensado como plataforma atlântica de duplo uso, civil e militar. Se os EUA valorizam o controlo de rotas, a vigilância marítima e a autonomia tecnológica, os Açores podem oferecer muito mais do que uma pista de aviação. Podem e devem ser um laboratório vivo e ponto logístico essencial para missões de longo alcance na investigação oceânica, aeroespacial e climática.

Por fim, e talvez com maior urgência do que nunca, impõe-se a diversificação das parcerias internacionais. Se Washington empurra a Europa para a periferia do xadrez global, Portugal e os Açores, pela sua proeminência atlântica, dispõem de uma rara oportunidade para aprofundar relações com um leque mais vasto de parceiros e redes científicas internacionais. Afirmando-se não como triste periferia, mas como verdadeiro carrefour estratégico num tempo e num mundo marcados pela incerteza.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Speakers' Corner 61

Uma abstenção passivo-agressiva

De acordo com os dados mais recentes, a execução financeira das verbas do PRR estava, no país, reportada a novembro último, na ordem dos 45%, e na região, segundo dados do 1.º trimestre de 2025, nuns envergonhados 37%. Convém lembrar que, impreterivelmente, todos os contratos do PRR terão de estar finalizados até agosto de 2026 e a sua execução financeira concluída até dezembro do mesmo ano, ou seja, dentro dos próximos 12 meses.

Este pacote financeiro mastodôntico de mais de 22 mil milhões de euros a nível nacional e 725 milhões para a região, criado pela União Europeia na esteira da calamidade pandémica, que primeiro foi bazuca e depois vitamina, corre afinal o risco de se tornar um pífio “Viagra” de contrafação, cujo efeito real na economia promete ficar dolorosamente aquém dos seus objetivos iniciais.

Ainda esta semana, Pedro Dominguinhos, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, chamou a atenção para as crónicas dificuldades nacionais de planeamento e para os riscos de a execução do plano vir a afetar de forma muito negativa setores essenciais como a educação e a saúde. Também na região, o Conselho Económico e Social dos Açores tem repetido alertas para os atrasos e dificuldades na execução dos envelopes financeiros, recomendando “particular atenção sobre estes dados, para que a execução do PRR não se revele mais um problema, em vez da solução de alto impacto inicialmente prevista”.

Na semana passada, no debate final da proposta de Plano e Orçamento da Região, Berto Messias, novo líder parlamentar do Partido Socialista, depois de fazer duras críticas ao Governo Regional, várias delas amplamente legítimas, sobretudo no que toca à execução dos fundos europeus, acabou por justificar a abstenção do seu partido com a necessidade de a região não desperdiçar “um único euro” do PRR e do Açores 2030.

Ora, o problema é a profunda incoerência entre o discurso e o voto e os seus efeitos reais na vida política regional. A percepção dominante entre a opinião pública e a publicada é a de que existe um descalabro evidente na governação. A situação financeira aproxima-se perigosamente de uma pré-catástrofe, e o Governo não demonstra capacidade para inverter o rumo. A SATA, a dívida, o turismo em queda precipitada, compõem o cenário claro de uma bomba-relógio económico-financeira prestes a explodir nas mãos do açoriano comum, para quem o PRR e o Açores 2030 são mais miragens do que vantagens.

Perante isto, o principal partido da oposição parece mais preocupado com a sua própria sobrevivência do que com a subsistência da região. Num tempo em que se discursa abundantemente sobre a “credibilização” dos agentes políticos, sobre a necessidade de combater os populismos e a polarização, o PS-Açores optou pela velha arte do calculismo eleitoral de criticar com convicção para, logo a seguir, viabilizar a governação.

E é precisamente aqui que se revela a fratura mais profunda da nossa vida política regional que, tal como a nacional, tem sacrificado a ideologia e a coerência à tática e ao cálculo. Critica-se o Governo com veemência discursiva para, instantes depois, lhe segurar a escada na esperança de não se perder o lugar. Esta duplicidade, embrulhada em justificações piedosas, corrói o próprio conceito de serviço público e, o mais grave, aprofunda o descrédito dos cidadãos perante os políticos.

Os partidos perderam a noção de que existem para servir e lutar pelas ideias que dizem representar. Em vez disso, movem-se numa coreografia permanente de estratégias, sondagens, lugares a distribuir e equilíbrios internos a manter, num xadrez onde o povo serve mais de peão do que de razão de ser. E enquanto esta cultura política persistir, o que está verdadeiramente em risco não é apenas a execução do PRR, e dos milhões que a UE nos acena como uma cenoura encantada, mas a própria possibilidade de fazer da política um ato de coragem, responsabilidade e verdade.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Speakers' Corner 60

Uma revolução de cravos

Camila Vitorino, natural de Setúbal, com 26 anos, 1,76 m e uma beleza morena estonteante, foi a representante de Portugal no concurso Miss Universo 2025, que teve lugar na Tailândia na semana passada. Num dos desfiles, Camila apresentou um vestido adornado com cravos vermelhos, em homenagem, segundo ela, a Celeste Caeiro.

Celeste Caeiro foi quem, na manhã de 25 de Abril, distribuiu cravos pelos soldados que subiam o Carmo para cercar Marcello Caetano. Esse gesto simples tornou-se inadvertidamente num símbolo de liberdade e da própria revolução. Há dias, quando a minha filha mais nova me pediu sugestões para um trabalho escolar sobre grandes mulheres que mudaram a História falei-lhe precisamente desta mulher, tantas vezes esquecida e anónima, que num gesto “inteiro e limpo” deu um nome à mais poética das revoluções.

Também na última semana tive o prazer de acompanhar, em parte, um colóquio, em boa hora promovido pela Biblioteca Pública de Ponta Delgada, sobre 1975, reunindo os arquipélagos da Macaronésia na reflexão histórica sobre a sua independência e autonomia. Nesta iniciativa amplamente louvável, ainda que demasiado centrada no famoso 6 de Junho, ficou evidente a dor profunda e ainda muito viva que lateja nos que participaram nos acontecimentos daquele ano. O país, e os Açores, continuam marcados por divisões ideológicas que atravessam famílias e memórias, com o peso de uma cicatriz que teima em não sarar. Feridas essas que são ainda mais visíveis por estes dias nas divisões a que assistimos nessa polémica espúria do 25 de Novembro, que reacende confrontos que esperaríamos ultrapassados. A Revolução dos Cravos, celebrada pela imprensa estrangeira como “a revolução cavalheiresca”, conseguiu evitar um banho de sangue, mas que deixou atrás de si um rasto de mágoas. O fim do regime, as arbitrariedades do PREC, tanto de um lado como do outro, continuam a ecoar em memórias vividas ou herdadas. 50 anos depois o país continua a tropeçar nas suas próprias sombras.

Ora, um dos momentos mais pungentes do colóquio foi o diálogo entre António José de Almeida, filho do carismático e apaixonado líder da FLA, e Joana Borges Coutinho, neta do Governador Civil de então, que se demitiu a 6 de Junho, pressionado pela grande manifestação popular, impulsionada pela lavoura, junto ao Palácio da Conceição, episódio que continua a gerar interpretações tão distintas como emoções intensas. Este encontro, entre descendentes de lados opostos, num gesto raro de concórdia num tempo de divisionismos, demonstra que é possível, afinal, aproximar-nos através da escuta e do reconhecimento mútuo e, quem sabe até, sarar essas feridas.

Infelizmente, o falhanço das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, marcadas por desinteresse e revisionismo, evidencia que permanecemos presos às divisões do passado. E também nos Açores, os 50 anos da Autonomia parecem encaminhar-se para mais uma oportunidade perdida, mais vocacionada para alimentar dissidências do que para promover encontros como o protagonizado pelo Tó Zé e a Joana.

Porque, no fundo, apesar de tudo o que nos separou e ainda separa, continua a existir um sonho comum que nos une no desejo do melhor para a nossa terra. Esse sonho está inscrito na alegria pura dos cravos vermelhos, símbolo de uma liberdade que deveria unir-nos. Num momento em que tantos se esforçam por acentuar divisões, foi também esse o significado do gesto de Camila Vitorino ao usar o seu vestido, recordar-nos que o essencial é aquilo que nos une e não aquilo que nos separa.

Num tempo em que tantos se esforçam por reacender fronteiras invisíveis, talvez devêssemos parar um instante e escutar de novo o silêncio desses pequenos grandes gestos. A flor de Celeste, o sorriso de Camila, a reconciliação improvável de dois filhos e netos de lados opostos.

Para os mais curiosos, foi a Miss México quem ganhou o título. Mas a história que realmente nos importa vestia cravos vermelhos.

 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Speakers' Corner 59

O Candidato Vieira

Nos anos 90, Lisboa fervilhava com uma pulsão indefinida feita em partes iguais de restos do pós-Estado Novo e grandes aspirações europeias, pelo meio, drogas, contracultura, angústia adolescente e uma inocente convicção de que o mundo era a nossa ostra. Antes do Lux, essa catedral do hedonismo urbano, a noite lisboeta era feita de Bananas, Alcântara Mar e do sempre ubíquo Bairro Alto, onde, entre o Estádio, o Frágil, o Mahjong e “As Primas”, numa peregrinação pagã regada a Sagres, B52’s e uma vaidade exacerbada que nos fazia sentir parte de uma qualquer vanguarda cultural, mesmo que muitos de nós, como era o meu caso, ainda vivêssemos em casa dos pais, a nossa ânsia de mundo era engolida a tragos sôfregos de desejo e má poesia.

De vez em quando a cidade estremecia com raves clandestinas em armazéns devolutos em Xabregas, concertos de bandas sem nome e uma vaga sensação de que estávamos a assistir ao nascimento de um novo mundo. Tudo isto num fervor pré-Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, o momento em que acreditámos colectivamente que a modernidade finalmente tinha chegado a Portugal.

De entre esses fenómenos alternativos que pontuavam por uma Lisboa em busca de si própria destacava-se o cabaret circense dos Irmãos Catita, projeto paralelo do artista plástico Manuel João Vieira, famoso pelos seus Ena Pá 2000 e um talento raro para cantar atrocidades com a ternura de um urso panda com excesso de álcool no sangue. O público, feito maioritariamente por uma juventude à deriva, reconhecia-se na sua ironia corrosiva e na sua recusa sistemática de levar o país a sério, uma qualidade que, infelizmente, o país não soube retribuir.

Três décadas depois, o nome de Manuel João salta agora para a ribalta política, desta vez incarnando o seu perene Candidato Vieira. Com boné de comandante da TAP, gravata demasiado grande e um ar de meliante do Caís do Sodré, o nosso velho Yorick da contemporaneidade nacional invadiu o espaço público com a sua ironia impiedosa. O espanto foi tal que alguns comentadores chegaram a perguntar quem era aquela criatura distópica e o porque desse tempo de antena num teatro político que se finge de sério, mas que tantas vezes é apenas trágico-cómico.

Portugal, de facto, não cultiva o humor. A nossa política muito menos, habituada como está ao cinzentismo burocrático dos gabinetes e da retórica parlamentar. Ao contrário do Reino Unido, onde um tal Lord Buckethead se candidatou defendendo a venda de Nigel Farage às peças e concursos de fato de banho nos debates políticos. Ou o Brasil, onde o palhaço Tiririca foi eleito com o slogan “pior do que tá não fica”.

Talvez seja por isso que tenha escandalizado tanto a proposta de canalizar vinho para todas as casas, proibir as doenças por decreto ou extinguir o Ministério da Educação. Não por serem absurdas, mas porque expõem a verdadeira natureza desta campanha, uma eleição presidencial feita num deserto emocional, vazio de carisma, empatia e visão, mesmo com os seus 8 candidatos e 28 debates televisivos para nos convencer a votar neles. O mais alto cargo da nação parece nivelado por baixo, já não há estadistas ou políticos que se possa apreciar e sem que alguém se apresente como alternativa concreta ao presidente cessante, ele próprio o mais básico dos nossos Presidentes da República, mesmo mais que Cavaco Silva, espécie de espantalho cívico, feito de lata, palha e ausência de coração.

O esvaziamento da nossa classe política, reduzida em apenas uma geração ao estridente Ventura, o abominável Almirante, o inócuo, invisível, Seguro e o mini-Marcelo que é Marques Mendes, criou o terreno perfeito para que o Candidato Vieira surja como uma lufada de ar fresco no bafio sonolento da nossa tristeza nacional. E se o país se assusta com ele, talvez o problema não esteja no humor. Talvez esteja no facto de a realidade ser agora tão absurda que a sátira já nem parece sátira, mas um espelho vivo da nossa desgraça.

 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Speakers' Corner 58

A (des)comunicação social

Na última semana, o CIVISA elevou para V3 o nível de alerta do vulcão de Santa Bárbara, na ilha Terceira, devido ao aumento da atividade sismovulcânica que se encontra com índices acima dos níveis de referência, em resultado de um processo de intrusão magmática em profundidade. Este recrudescimento do nível de alerta levou a uma súbita excitação dos meios de comunicação social, colocando os Açores no spotlight das notícias de última hora. As tragédias são bons captores de audiência e nada como o prenúncio de uma desgraça para alimentar a sede de sangue dos media. Veja-se, a propósito, como a SATA, na sua longa e agonizada tragédia, alimenta as manchetes dos suplementos de economia.

O episódio mais revelador desta onda noticiosa foi a sucessão de imagens erradas divulgadas pelos principais órgãos de comunicação social nacionais. A Terceira surgiu ilustrada pelas Sete Cidades, e o vulcão de Santa Bárbara foi confundido com a Praia de Santa Bárbara, na Ribeira Grande, em São Miguel, entre outras cómicas representações da iconografia do arquipélago. Este desconhecimento básico da geografia insular é recorrente e não seria particularmente grave se não revelasse algo bem mais profundo: o estado de erosão e degradação daquele que deveria ser um pilar essencial da democracia e do estado de direito, aliás reconhecido enquanto quarto poder – a imprensa livre.

O que assistimos hoje, nesta era da “pós-verdade”, é uma corrosão clara dos principais mediadores entre a informação e o público. Com os órgãos de comunicação social transformados eles próprios em agentes de desinformação. Onde antes existiam redações estruturadas, com editores experientes e revisão rigorosa, encontramos hoje equipas reduzidas, pressionadas por interesses financeiros e dependentes de jornalistas mal preparados e mal remunerados.

Esta degradação não é apenas um problema corporativo. Tornou-se uma ameaça à própria qualidade do debate público. Quando a informação é frágil ou manipulada, abre-se caminho à legitimação de discursos populistas, autoritários e emocionalmente inflamados, que prosperam num ambiente onde o espírito crítico é substituído pelo impacto imediato e baseado na mentira.

O problema torna-se mais inquietante quando são os próprios agentes políticos a controlar a mensagem através das suas estruturas de comunicação. Partidos, organizações e governos criam aparelhos internos que interferem diretamente no ecossistema informativo, moldando agendas e percepções. O Governo de Luís Montenegro, o mesmo que pôs em causa o trabalho da comunicação social no caso Spinumviva, anunciou recentemente a criação da Secretaria-geral Adjunta para a Comunicação Institucional. Trata-se de uma nova central comunicacional, liderada por um antigo jornalista, destinada a profissionalizar a comunicação governamental e a reforçar a presença do Executivo nos media e nas plataformas digitais.

O discurso oficial apresenta esta estrutura como mera racionalização da comunicação pública. Na prática, como bem sabemos na Região, desde os tempos do velho GACS, estas centrais funcionam como máquinas de propaganda institucional, produzindo conteúdos embalados e prontos a publicar, capazes de inundar redações enfraquecidas com narrativas favoráveis ao poder político.

A isto soma-se um novo e determinante risco. Os motores de busca e os sistemas de IA consomem e replicam exatamente o conteúdo que lhes é fornecido. Se esse conteúdo é gerado por aparelhos de comunicação política ou por redações descuidadas, baseado em erros, enviesamentos ou manipulações, a desinformação e a mentira multiplicam-se em espiral. Criamos assim um espaço público onde a fronteira entre facto e invenção se torna praticamente imperceptível. Já não se trata apenas de pós-verdade. É a pós-realidade, um lugar onde a ilusão e a mentira se tornam mais convincentes do que o próprio mundo real.