Espetáculo

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As cortinas se abrem, revelando um picadeiro de mármore frio. Nele, uma mesa com um copo d’água e nosso menestrel repousando sob uma cadeira. Sua maquiagem de palhaço não esconde seus olhos profundos como um oceano e seu sorriso irônico. Todos o viram ao menos uma vez na vida e o verão, ao menos uma vez antes da morte. Ele levanta, olha para seu público e começa seu show.

Primeiro Ato.

***

Não vou me apresentar, porque não importa muito nesse ponto. Na verdade, poucas coisas realmente são importantes nesse péssimo hábito exercido chamado “viver”. E menos ainda as que damos o devido valor e proporção, principalmente quando se tem 15 anos. Todos passaram por essa fase, na qual toda paixão é um mar de felicidades ou desespero e as opiniões de seus colegas de classe são mais importantes que suas notas, seus pais ou mesmo o que você realmente é. Engraçado como poucas pessoas se lembram de como crescer é tão solitário. Não é?

É, eu sei. Também me sinto assim.

Continuando, eu tinha 15 anos. Nunca fui popular, nunca beijei todas as garotas que quis ou consegui tocar Quebra-Mar do “Acústico MTV – Charlie Brown Jr” no violão. Era um dos tantos caras meio solitários, meio apaixonados e meio desesperados que existem em uma cidade. Estava sentado na frente de um computador, em uma segunda-feira entediante que prometia o típico final de merda como tantas outras, até que ela me ligou.

***

Chegamos à metade de nosso breve contato. O palhaço se permite uma pausa para um gole rápido e grande demais de água, que o faz engasgar e cuspir. Ninguém ri, além dele próprio. Uma piada velha e sem graça. Ele está satisfeito.

Inicia o segundo ato.

***

Hesitei um pouco pra atender (engraçado como você meio que presente as coisas), ouvi mais dois toques e tirei o telefone da base.Senti que todo chão desabava. Estava anestesiado na cadeira e tudo girava ao meu redor. Cada palavra, uma facada no coração, na carne, na alma. Estava apaixonado por uma garota que, mesmo depois de algumas tentativas, não tinha dado certo. Ela tentou se afastar, eu discordei e aceitei a posição do “amigo”. “Grande erro”, vocês dizem.

Concordo. Um erro que eu paguei com juros a cada palavra dela sobre o novo namorado, a nova transa e como tudo foi incrível. Ela desligou. Eu cai, cada vez mais até chegar a mim mesmo e no chão frio. Não sei o tempo que passou até que me levantei, sem propósito, sem rumo e sai pela porta.

Não vou dizer se foi certo ou errado. Talvez fosse diferente se eu fosse mais maduro, se não fossem todas as merdas que aconteciam desde sempre, se eu tivesse mais atitude. Mas não tinha. Não era só sofrimento. Era uma corrente de ferro frio, contínua, quando seus dias parecem iguais uns aos outros e você perde a certeza do que foi hoje ou aconteceu ontem. Era a sensação que tudo estava errado. Era a solidão de perder sua própria alma.

A rua estava escura e o vento não era nada convidativo. Prossegui em passos incertos, sem acreditar realmente onde meus pés me levavam. O mundo ao meu redor era vazio. Não sei descrever as pessoas que esbarrei, as ruas que cruzei ou as luzes daquele bairro de subúrbio naquela hora. Minha percepção voltou quando olhei para a passarela acima da rodovia e entendi como terminava tudo aquilo. Uma comédia sem graça, sem palco, sem nada. Estava pronto para encerrar o espetáculo, colocar as cadeiras em cima da mesa e apagar a luz quando sair.

***

Pausa. Toda a atenção da plateia está voltada para o palhaço. Ele sente a palpitação latente em muitos corações desesperados. Sente a indiferença de alguns, que esperavam uma comédia. E pensa consigo próprio como, depois de tanto tempo, aquilo ainda funcionava. Deixa no ar uma respiração rápida, do que ainda está por vir.

Terceiro Ato

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Loucura? Talvez.

Minhas mãos seguravam com muita força o concreto áspero daquele lugar. Olhei duas vezes ao redor, sem saber ao certo se queria ser resgatado ou não ser atrapalhado. Era tudo incerto. Olhei para o grande vazio de asfalto abaixo. Nietzsche disse sobre os perigos de olhar muito tempo para um abismo: ele pode acabar te olhando de volta. Sem perceber, abri as mãos.

Uma de minhas crenças até o momento é que alma humana sempre busca a vida. Então achava que seria um trabalho árduo abrir a mão e cair no vazio infinito que existe ente um ponto e outro, antes do impacto. Mas não. Foi muito fácil. Senti a vertigem da gravidade me chamando para uma conversa e pensei no motivo disso tudo, em meio a tanta amargura. É verdade o que dizem: o tempo realmente passa mais devagar. Tive um breve momento para pensar nas reações de quem conhecia, do que eu sentiria a falta, No que realmente importava.

Era uma morte burra, fácil, idiota e estúpida. Por nada. Por ninguém. Até aquele ponto, a vida foi um longo e prolongado grito de um suicídio. Mesmo em 15 anos, não tinha nada de significativo e era minha culpa. Poderia viver e escolhi existir. O jeito mais fácil. Não me importei muito com o depois, se existiria céu ou inferno que me acolhessem. Mas palpitou medo, culpa, arrependimento e raiva. Foi covarde.

No fim, não valia a pena.

Um rápido puxão me fez perder o fôlego. Segurei-me desesperadamente nos apoios que tão fácil desisti e senti uma mão agarrando com toda força minha camisa. Com mais um movimento, consegui sair daquele ponto, cai no meio da passarela e vi meu salvador. Um rosto familiar, um vizinho, um amigo de infância. Uma nova chance. Ouvi um rápido “que merda foi essa?” antes de abraçá-lo e agradecer a Deus, Buda, Alá e a qualquer outro filho da mãe celestial que estivesse ouvindo. Chorei e gritei.

Finalmente, estava vivo.

***

O palhaço faz um gesto que encerra a história. A plateia lentamente se dissipa, sem aplausos. Ele não os espera, de qualquer forma. Poucos sabem reconhecer sua genialidade e muitos questionam seus métodos. No entanto, funcionam. Queime-os, até que renasçam das cinzas. Ele coloca a cadeira em cima da mesa e bate duas palmas, para apagar as luzes.

Fim do espetáculo.

Papo de Escritor #02 – Sobre “A Banda Mais Bonita da Cidade”, Hypes, Haters e modinhas.

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Créditos: Kelly Fernanda Andrade

Hey,

Eu tinha outros projetos de post nessa semana (dentre eles, dois contos e um texto pro “Papo de Escritor” mais metalinguístico, mostrando a importância da revisão de um texto), mas esses assuntos tomaram completamente minha cabeça desde quarta-feira e a necessidade de torná-los mais tangíveis (além de uma gripe violenta) adiaram por uma semana esses projetos. É a vida, meus caros.

Retomando, quarta-feira surgiu, em meio às brincadeiras normais, um diálogo bem interessante sobre “modinhas na música” e dentre alguns cantores sertanejos, alguns funks deslocados e alguns ídolos pop um tanto desgastados surgiu o nome d”A Banda mais bonita da cidade.” Sou simpático e li da garota em questão um verdadeiro monólogo de como os hypes destroem qualquer obra de qualidade, além de venderem sua alma para o sistema, etc, etc.

Primeira revelação: eu já fui num show d”A Banda mais bonita da cidade”. Aconteceu em São Paulo, algum ponto perdido da Zona Leste, com ingresso grátis e matando uma aula de linguagens em comunicação. Até ali, desconhecia completamente a existência dessas pessoas além dos refrões (mal cantados) por outra amiga. Entramos no local, nos posicionamos junto a outros espectadores e começa o show. Sinceridade? Letra bobinha, mas não é nenhuma atrocidade. Instrumental bem legal. É uma música chiclete meio azul/cor de rosa, de pessoas meio estranhas e alegres demais. Contagia, se você consegue deixar de ser mala por alguns segundos e entra naquele clima de “festa em faculdade particular.”

E é isso. Uma banda legal, com uma música fofinha que fica na sua cabeça uns dias e depois passa. Só.

Entendo o ponto da minha amiga sobre “modinhas na música”.  Essa onda de colocar um hype acima de tudo como a melhor coisa do mundo depois do pão fatiado é um tremendo desperdício de energia. Claro que, quando nos encantamos, queremos que o mundo inteiro se encante conosco. Mas não. Nas palavras do Trevisan, “(…) em um mundo em que cada um sai no mato com o seu próprio rifle caçando o próximo ‘fenômeno da internet’ (categoria que já tem até premiação), o número de views de um vídeo vale bem mais do que analisar o que a banda, o moleque desocupado no sofá de casa mostrando o mamilo ou o rapaz que faz stand-up tem a oferecer a longo prazo.”

Como toda força tem uma inércia equivalente, existe também um grupo que ODEIA modinhas. Os desbravadores do Facebook, do Twitter, de “adicione a rede social correspondente aqui”, de músicas, filmes, etc. Vanguardistas, eles já gostavam de tudo que era legal, interessante ou inteligente antes de todos. Uma casta com dons precognitivos que delineou o futuro de toda cultura. Até o momento que virar mainstream e todos conhecerem. Ai vira uma bosta, um conteúdo manipulativo e alvo da nostalgia na frase “já foi bem melhor”.

Interessante o paradoxo estabelecido. Existe um espírito que permeia a internet do “faça e aconteça”, do lutar pra buscar o sucesso e, quando realmente acontece ou é aceito por uma maioria, a minoria vanguardista repudia e desclassifica todo valor existente. A Banda Mais Bonita da Cidade não vai mudar o rock, a MPB, a música e nem vai ganhar mais espaço que uma música aleatória na minha lista de MP3. Mas que toquem. Ninguém precisa ouvir se não quiser.

C.

Nostalgia

 

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Cara, eu gosto de filmes.

E digo que existe muita divergência sobre o que é um filme, além de películas onde histórias são registradas. Muitos os encaram como pura diversão. Já outros, o veem como uma experiência e extensão da vida (a vida imita os filmes e os filmes imitam a vida). Alguns acham que filmes são obras de arte. Do meu ponto de vista, não existe uma maneira errada de se ver essa questão. Se sua visão te é elegante e te satisfaz, ok. Nunca foi segredo pra ninguém minha paixão por filmes ou cinema.

O segredo é que sinto saudades das locadoras.

Não sou um Spielberg, um J.J. Abrams ou uma das centenas de crianças dos anos 80 que faziam seus filmes caseiros com aquela super 8 velha, que registravam seus programas, brincadeiras e lapsos de criatividade com um gravador antigo. Sou dos anos 90, a fase intermediária entre o Super Nintendo e as brincadeiras de rua, com aulas de informática em uma caixa que, hoje, nem poderia ser considerado um computador. Então muito de minha nostalgia se concentra naquele estranho local.

Imaginem: uma loja com centenas e centenas de fitas VHS (nesse ponto, algum jovem já se perdeu e foi no Google ver o que é uma VHS), cada uma com um filme! Era incrível como me sentia perdido e maravilhado naquele ambiente. Quanto maior a rede de locadoras, mais fácil de possuir os últimos lançamentos, novidades e mais sessões proibidas para menores de 18 anos (a qual nunca consegui invadir… uma frustração juvenil, diga-se de passagem).

No entanto, eu gostava do clima da locadora de bairro. Certo, existia pelo menos umas 5 por vizinhança mas, no geral, você conhecia o proprietário, os clientes, o momento que saia pão fresco (a locadora em questão era do lado da padaria… ótima desculpa pra ir buscar um pãozinho) e quando “Batman” estaria disponível novamente.

O lado bom de locadoras para cinéfilos, em uma época pré internet, era encontrar um filme novo. Aqueles pequenos tesouros atrás de outros filmes mais populares, como “A felicidade não se compra”. A recomendação daquele funcionário que compartilhava sua paixão e escondia (secretamente) um “Exterminador do Futuro” ou “Titanic” debaixo do balcão porque você passaria lá mais tarde… Bom demais.

Mas já mencionei que os anos 90 são uma fase intermediária. E eles chegaram ao fim quase ao mesmo tempo que começava a infestação do DVD. Caríssimos, menores e com extras para os apaixonados por cinema.

E as locadoras começavam a sumir.

O DVD foi para esses ambientes como o café foi para o Brasil império: uma benção de morte. Apesar do crescimento inicial, a multiplicação dos camelôs vendendo “3 por 10 reais” esvaziava cada dia mais o local. Muitos fecharam. Muitos tiveram que optar por outras soluções. E hoje, no meio de julho, quando fui última locadora de bairro que conheço, vi o triste cartaz dizendo “Temos todos os materiais escolares” me bateu um leve aperto no coração e relembrei do Seu Marco escondendo “Exterminador do Futuro” porque eu ia passar na loja depois do judô, da felicidade em descobrir “Gremelins” escondido atrás de “Chuck, o Boneco Assassino” ou mesmo do cheirinho de pão fresco vindo da padaria da Dona Júlia. Novos tempos com velhas nostalgias. Consequências de ficar mais velho.

Talvez.

Onze de Junho

Nota: Essa foi uma história emprestada por uma grande amiga e a agradeço muito por me dar a chance de escrever esse adendo. Complete-a em: http://liliantormin.blogspot.com.br/2012/07/onze-de-junho.html

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Dia onze de junho em um ano qualquer. O inverno batia as portas com ventos gélidos e nada convidativos. Um clima cinza e ameno em uma cidade mais ou menos do mesmo modo. E, apesar de tudo isso, era um frio que a fazia suar.

Acordou com o cabelo bagunçado em uma cama de lençóis brancos. Cena comum, tirando uma percepção antiga que se instaura. Seus sentidos se ampliam com as emoções e pequenas peculiaridades sensoriais dessa situação familiar. Apesar disso, levanta-se, escova os dentes, penteia os cachos delicados e deixa a rotina como condutora.

No trabalho, ela se estressa, almoça, se atrapalha, da uma risada. Nada extraordinário para qualquer observador comum. Mas ela é mulher com jeito de menina, taurina como ela só. A rotina resolve abandonar esse carro desgovernado e a expectativa assume o volante.

Está chegando a hora.

A expectativa é uma guia rápida e inconstante que a carrega pelas ruas, pelo metrô, pelo caminho. Para no ponto de encontro marcado, ansiosa pelo que vem a seguir. Os minutos, insatisfeitos com tanta pressa, resolvem caminhar lentamente. Só de pirraça mesmo. Eternidades passam até que seus olhos verdes não seguram a expectativa e sua boca lhe trai com uma risada descontrolada.

Ele chegou.

Perto dele, nunca sabe ao certo quem é. Conhece seu toque, cheiro, metamorfoses que sofreu após conhecê-lo. Sabe que rosto nunca disfarçou o turbilhão de pensamentos que vem e vão de tempos em tempos. Sabe que ele a conhece perfeitamente e a tem na mão. É seu caso mais antigo, mais longo. Atemporal.

Claro que existiram outros caras, nessas lacunas. E, independente de serem rápidos, breves, longos, intensos ou apaixonantes; o caminho de volta era sempre inconsciente e seguro. No fim, a questão sempre chega nele quando algo (ou alguém) dá errado. E sempre se perde nos devaneios de quem fomos, como éramos, o que seriamos, o que seremos e tudo que fizeram deles um nós. Essa conjugação futura, na primeira pessoa do plural, sempre foi problemática.

Tentou até escolher a lingerie de mulher fatal. Aquelas que lhe darão a postura de “decifra-me ou devoro-te”. Mas, por fim, teve que se contentar com ela mesma e a esperança de entender quem é ao lado dele.

Sem cerimônia, ele dispensa os rituais tradicionais da sedução, do quem beija quem primeiro e a cumprimenta com selinho. Natural. Suave.

Ela se perde.

Seu coração volta a bater sem tropeços.

Aos olhos de todos, são só mais um casal comum indo de metrô até a Avenida Paulista, numa noite fria de São Paulo. Caminham de mãos dadas embaixo da torre da rede Globo, ouvindo um sax aleatoriamente perfeito para o momento. Eles vão ao Fran’s Café, riem e lembram-se da vez que ele a beijou como Nino beijara Amelie em “O Fabuloso Destino de Amelie Poulin”.

O frio finalmente os expulsa da rua para o aconchego de sua casa. Os lençóis brancos pegam o ritmo daqueles corpos. A cadência da respiração de dois apaixonados, do toque de dois corpos. Mais do que sexo, é um encaixe assimétrico e, por isso, perfeito. Beijos, risadas, fotos, orgasmos e um final de noite pleno.

Despedida.

Estão na catraca do metrô, em nova cena já conhecida. Um breve adeus sem previsão de retorno (coisas da vida). Um novo beijo mais intenso marca essa manhã estranha do dia seguinte. Ele vai com a expectativa, mas deixa as lembranças e uma mulher ansiosa para outra noite fria de onze de junho.