Mapa Balcãs – Iugoslávia

ImageP.S.1- Embora tenhamos encontrado várias fontes que incluíam a Romênia como parte dos Bálcãs, os  próprios romenos não se consideram. O mesmo, com relação aos turcos e alguns gregos.

P.S.2-vários países, incluindo o Brasil, não reconhecem a independência do Kosovo. Fica a critério do leitor, enxergar a linha da fronteira com a Sérvia como de um país, ou como de uma província.

P.S.3-O governo grego, assim como grande parte da população não concordaria com a palavra Macedônia acima, se referindo ao país, que para eles, deveria se chamar FYROM: Former Yugoslavian Republic of Macedonia. Consideram Macedônia apenas a região situada no norte da Grécia. Os dois países disputam a nacionalidade de Alexandre, o Grande, e a mudança do nome é a condição dada pelos gregos para não votar contra a o ingresso do vizinho na União Européia.

Assim são osBálcãs. Até o simples ato de desenhar um mapa traz uma série de implicações políticas.

O começo

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A entrada nos Balcãs foi mais gradual do que a princípio imaginei.

Trieste, no nordeste da Itália, foi nossa última parada na Europa Ocidental, mas até a 2ª Guerra Mundial a cidade se chamava Trste e era a mais importante da Eslovênia – ainda hoje há impressões stencils com um inflamado “Trste é nossa” nos muros de Liubliana, a capital do país. A cidade fica em um tentáculo italiano que avança no litoral esloveno e a fronteira é tão próxima que os triestinos abastecem seus carros no país vizinho, onde o combustível é mais barato. Como não poderia deixar de ser, é um lugar de transição, com placas bilingües nas cidadezinhas vizinhas e famílias que não falam italiano. Há ainda nessas vilas a tradição eslovena das osmizas, quando famílias transformam seus quintais em cantinas que servem só o que foi produzido ali – vinho, presunto, pães, tomates secos, azeitonas e queijos.

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Trieste

Em Trieste pegamos o ônibus para Liubliana. São 2 horas de viagem por uma estrada de montanhas e árvores: foi assim que um dos países mais verdes da Europa foi se apresentando. E então chegamos na capital, que é pequena, linda, limpa e cara. A parte antiga da cidade cresceu ao redor de um castelo, protegido pelo rio Liublianica, com arquitetura austro-húngara. No centro histórico, as ruas são cheias de bebês e bicicletas e o trânsito é só de pedestes, para o prazer dos turistas e incômodo dos moradores que precisam de carros. E há músicos na beira do rio, com acordeões e instrumentos de sopro. A cidade é tão perfeitinha que parece saída de um conto de fadas.

Fora do centro, arquitetura comunista, grandes parques, alojamentos universitários, casas sem muros, quintais com frutas. A cidade vai raleando até se transformar em pequenas vilas, várias delas com fortes de pedra em cima de montanhas.

E os eslovenos são muito gentis, falam inglês bem e são mais pontuais do que razoável – os trens saem às vezes 2 minutos antes do horário. Nos restaurantes, cerveja em canecas de meio litro, muitas massas, presuntos crus e wi-fi.

Trieste

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Ainda sobre Trieste:

– Antiga cidade-estado portuária. Junto com Veneza e Dubrovnik, eram os mais importantes portos do Mar Adriático.

– O vento Borá, que chega do sul no inverno, só não carrega as pessoas porque existem algumas alças espalhadas pela cidade para os pedestres se segurarem…

– Depois da I Guerra Mundial, Trieste foi anexada à Itália. De 43-45,  foi ocupada pelos nazistas. De 45-47, pelos Partisans iugoslavos. De  47-54 voltou a ser zona-autônoma, em um acordo entre os Partisans (Tito) e os Aliados (EUA e UK). Em 54 voltou a fazer parte da Itália.

– O Triestin é considerado um idioma à parte, mais do que um dialeto. E os moradores consideram a cidade praticamente ainda como uma cidade-estado. Se referem ao resto da região de Friuli-Venezia Giulia (que falam o dialeto friulano) de um modo como se não pertencessem à ela.

– O psiquiatra veneziano Franco Basaglia desenvolveu na cidade a Psiquiatria Democrática, que revolucionou, humanizando, o tratamento mental nos anos 60. A cidade mantém intenso intercâmbio com o Brasil neste campo.

– Proximidade cultural com os Bálcãs. No verão, festival de música balcânica e êxodo em massa para as praias e mais de mil ilhas croatas.

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Interseções

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Muitas são as diferenças entre os países da ex-Iugoslávia, mas existem também algumas semelhanças:

1) Nostalgia por Tito – Principalmente entre os que viveram entre 43 e 80, quando todos tinham trabalho, liberdade de ir e vir, relações pacíficas e mesmo afetivas com os vizinhos de república (muitas famílias se misturavam). Tito conseguiu unificar a região com carisma, charme e violência – já que reprimia severamente qualquer manifestação separatista – “mas nada comparável com o que fizeram depois dele”, como dizem hoje.

2) Língua – Na época da Iugoslávia, a língua oficial era servo-croata (do ramo eslavo). Com o desmembramento, cada país começou a deliberadamente tentar acentuar seus regionalismos, e a chamá-la de sua. Agora, os sévios falam sérvio; os croatas, croata, e assim por diante. Quase todos podem ainda se comunicar facilmente. Os eslovenos entendem mais do que são entendidos. A língua macedônica é mais próxima da búlgara (os búlgaros a consideram apenas um dialeto da sua).  Sérvia,  Macedônia e Bulgária, apesar de terem a gramática, a fonética e a sintaxe bem próximas dos vizinhos, usam o alfabeto cirílico. Os kosovares são exceção. São de etnia Ilíria (albanesa),  e falam albanês. Na época da Iugoslávia, aprendiam sérvio-croata como segunda língua. Hoje, apenas os mais velhos  ainda a sabem­­.

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Verso da caixa de cereal, com o mesmo texto escrito em croata, sérvio, esloveno e búlgaro.

3) Café turco – a água é esquentada junto com o café, que é servido sem filtrar. O excesso de pó fica no fundo do bule, que possui a base mais larga que o topo. Só que em Sarajevo, o chamam de café bósnio; na Macedônia, de macedônio; e na grécia, de grego.  Na Sérvia, ouvi algumas vezes o termo “National coffee”. Na Eslovênia, Croácia , Montenegro, e Kosovo, ele segue sendo turco. Na Turquia,  a borra do fundo é usada para se ler os futuros.

4) O Clone – Novelas brasileiras, mexicanas e turcas são um grande sucesso em todos os países da ex-Iugoslávia (e também na Albânia). Assim como no Brasil, existe a “hora da novela”, em que 3 gerações, principalmente de mulheres, se reúnem em torno da TV.  No caso de “O Clone”, foi uma febre, principalmente por tocar na questão do casamento entre cristãos e muçulmanos. Hoje em dia, dependendo da região, os jovens de religiões/etnias diferentes eventualmente ficam, apesar de não ser muito comum, mas raramente se casam. Na época da Iugoslávia, casamentos inter-religiosos era mais comuns. Por causa da novela, é freqüente, quando menciono ser brasileiro para alguma mulher, que me peçam sorrindo para falar um pouquinho de português-brasileiro, que tem se tornado um tanto familiar para eles (já que as transmissões são em português, legendadas ), ou me perguntem pela Jade.

5) Big Brother (Velika Brat) – O reality show neste ano foi um sucesso. Realizado na Sérvia, com participantes de quase todos os países do ex-bloco (a Eslovênia tem o seu próprio – talvez pelo fato da língua ser menos parecida com as outras, ou por ser, culturalmente, um tanto mais austríaca – além de ser a única do ex-bloco a fazer parte da União Européia. Já o Kosovo, tem o seu Big Brother junto com a Albânia).

O programa é transmitido em todos os países participantes, porém cada um tem o seu apresentador local. Neste ano, surpreendentemente para todos, a vencedora foi uma croata casada, que teve uma relação extra-conjugal com um participante sérvio em rede internacional. O público se envolveu em uma novela em que o amante, depois de eliminado do programa, se revelou um cafajeste na opinião deles; e a protagonista, vitimizada, se tornou a heroína entre católicos, ortodoxos e muçulmanos. Por alguns meses, os espectadores sublimaram suas diferenças e tiveram um gostinho do tempo em que elas não importavam. Por alguns meses, a nostalgia por Tito se fez fato.

Ao longo dos anos

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Conhecemos o Nenad nas montanhas croatas, em uma vila de sérvios chamada Moravice. Estávamos há menos de uma semana nos Balcãs,  e ele nos deu dois exemplos para ilustrar a complexidade da região.

A avó do Nenad nunca deixou de morar em Zagreb mas teve 7 nacionalidades. Ela nasceu no Império Austro-Húngaro, em 1908. Com o fim da 1ª Guerra Mundial, em 1918, ela passou a ser cidadã do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (SHS), que em 1920 passou a se chamar Reino da Iugoslávia. Na 2ª Guerra Mundial a Alemanha e a Itália invadiram e desmembraram o país e em 1941 foi criado um Estado croata independente pró-nazista. Em 1945 o Eixo foi derrotado e a região foi reunificada com o nome de República Federativa Popular da Iugoslávia, substituída em 1963 pela República Socialista Federativa da Iugoslávia. Em 1991 ela passou a ser moradora da capital da República da Croácia.

Durante a maior parte de sua vida – 46 anos – ela foi iugoslava. Para enaltecer a grandiosidade do país, mas também tornando óbvia a sua complexidade, a Iugoslávia era descrita como um país com 6 repúblicas (Eslovênia, Croácia, Sérvia, Macedônia, Bósnia e Herzegovina e Montenegro), 5 etnias (eslovenos, croatas, sérvios, macedônios e montenegrinos), 4 línguas (esloveno, croata, sérvio e macedônio), 3 religiões (católicos, ortodoxos, mulçumanos), 2 alfabetos (cirílico e latino) e 1 presidente, Tito.

Liubliana

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A Eslovênia tem enorme influência austríaca na arquitetura, na religião, na culinária, no comportamento das pessoas e em sua organização. A região esteve sob o domínio da dinastia austríaca dos Habsburgo continuamente do séc XIV ao fim da I Guerra Mundial, com exceção do curto período entre 1809 e 1813, quando Napoleão a conquistou e adotou um regime mais liberal.

Com o fim da I Guerra e do Império Austro-Húngaro, a região se uniu sob o nome de Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, incluindo em seu território o que hoje é a Eslovênia, a Croácia, a Bósnia, a Herzegovina, a Sérvia, Montenegro, o Kosovo e a Macedônia. Em 1929, o país passou a se chamar Reino da Iugoslávia, que significa eslavos do sul.

Na II Guerra Mundial, o reino foi ocupado pelos nazistas e em 1945 foi libertado pelos partisans, liderados pelo Marechal Tito, e se tornou a República Federerativa Popular da Iugoslávia.

Com o tempo, a Eslovênia passou a ser o pólo econômico do recém-criado país. Com apenas 8% da população de todo o bloco, era responsável por 20% da economia. Com a morte de Tito em 1980, o desejo por autonomia cresceu até que em dezembro de 1990 realizaram um plebiscito em que votaram pela ruptura com a Iugoslávia. O governo central, em Belgrado, tentou impedir a separação através de uma guerra que durou 10 dias, mas as tropas iugoslavas se retiraram para se concentrar no combate ao separatismo croata, em uma guerra durou 4 anos.
Em maio de 1992, a Eslovênia se integrou à ONU.
Em maio de 2004, à União Européia.
Em janeiro de 2007, ingressou na zona do Euro, abandonando o antigo Tólar.

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Nacionalismo e religião

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Como a maioria dos governos dos Balcãs usa a religião como propaganda nacionalista, nacionalidade e religião tornaram-se praticamente indissociáveis na região.

Esloveno e croatas devem ser católicos. Sérvios, macedônios, montenegrinos, devem ser cristãos ortodoxos (desde que pertençam à maioria eslava de seus países).

Claro que há exceções. Na época da dominação otomana, ser muçulmano trazia muitos benefícios. Assim, alguns sérvios se converteram ao islamismo, e são conhecidos como Sanptzaks. Os macedônios convertidos são os Torbesh, e assim por diante. Mas são poucos. Os outros muçulmanos sérvios, montenegrinos e macedônios são de etnia ilíria (albanesa), e não eslava. Eles são também minoria e estão espalhados principalmente nas proximidades das fronteiras com a Albânia. Mesmo tendo a nacionalidade de seus respectivos países, são sempre chamados de albaneses e entre eles se comunicam em língua albanesa.

Os bósnios se dividem em católicos, ortodoxos e muçulmanos, ou seja, croatas, sérvios e bosniaks. O termo bosniak foi criado justamente para designar os bósnios muçulmanos, convertidos na época do império Otomano ou descendentes dos turcos. Os outros são chamados de bósnios-croatas e bósnios-sérvios.

Assim, por toda a região, é comum vermos torres de igrejas, minaretes de mesquitas, crucifixos no alto de montanhas sendo usados como bandeiras marcando territórios. Os croatas de Mostar, na Herzegovina (região que fica no sul da Bósnia e Herzegovina), chegaram ao ponto de construir uma desproporcional torre de 100 metros de altura no lado católico-croata da cidade, para se afirmarem (e segundo os bosniaks, provocarem) diantes das dezenas de minaretes espalhados do outro lado da ponte.

A Albânia é diferente. A identidade nacional se constrói muito mais pela língua do que pela religião. Eles eram cristãos antes da invasão turca, se converteram ao islã durante a dominação (remanescendo muitos católicos no norte, e ortodoxos no sul) e com a ditadura comunista, que fechou o país por quatro décadas, qualquer prática religiosa foi proibida por lei. Muitos se tornaram de fato ateus, outros continuaram a exercer sua fé clandestinamente. Com o fim do regime, alguns seguiram sem religião, mas muitos adotaram alguma, de modo moderado. A maioria das famílias escolheu o Islamismo, mas poucos praticam (incluindo aqui o Kosovo e as regiões dos outros vizinhos localizadas próximo às fronteiras com a Albânia). É muito raro ver mulheres usando véu, pessoas jejuando no Ramadã, se abstendo de álcool ou frequentando mesquitas.
Mas a visão nacional-religiosa dos seus vizinhos insiste em querer associá-los ao Islamismo.

E a religião é um ótimo pretexto para exarcebar diferenças e justificar interesses.

 

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Mesquita em Sarajevo, Bósnia e Herzegovina.
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Torre católica de 100ms no lado croata de Mostar, Bósnia e Herzegovina.
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Mosteiro ortodoxo St Naum, lago Ohrid, Macedônia.

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Rupturas

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Além de todas as tragédias, a guerra foi responsável por uma infinidade de rupturas afetivas. Quando estourou, em 1992, a Lilian, diretora de um centro cultural de Zagreb, de mãe croata e pai montenegrino, era casada com um ator de origem sérvia, que trabalhou em um dos primeiros filmes do diretor Emir Kusturica (Kusturitza).

{Os filmes do Kusturica e a música balcânica, representada ali por Goran Bregovic(h) e sua banda, popularizaram os Bálcãs em muitos países, mas na Bósnia, país de origem do diretor, ele é hoje persona non grata. Dizem que estava de acordo com a propaganda de Slobodan Milosevic(h) (presidente sérvio ultra-nacionalista), que ignorava os bósnios em seus filmes e que renunciou às suas origens ao se rebatizar na Igreja Ortodoxa Sérvia como Nemanja. Seu nome anterior era Emir (príncipe, em árabe), que o vinculava à sua origem bosniak (bósnios muçulmanos). Ele teria declarado que os eslavos se converteram ao Islã apenas para sobreviverem aos invasores otomanos, e que agora aquilo fazia parte do passado.­ ­Não o perdoam por ter se convertido a sérvio, em plena guerra da Bósnia. Consideram esta uma ruptura definitiva.}­­

Mas não era desta ruptura que estava falando, mas da do ator de um dos seus filmes com a Lilian, por causa da guerra. Na época da Iugoslávia, era comum a mistura nas famílias entre pessoas das etnias das 6 repúblicas que formavam o país. Com a guerra, vários laços foram desatados geograficamente pelo Estado, mesmo os de sangue. No início dos conflitos entre Croácia e Sérvia, em 1991, os sérvios foram expulsos da Croácia e os croatas, para irem para a Sérvia, tinham que passar pela Hungria. O ator, que morava então em Zagreb, foi obrigado a voltar para Belgrado, criando uma distância que acabou destruindo a relação.

No dia em que ele telefonou para dizer que estava apaixonado por outra, ela concluiu:

“que nos separemos então de modo civilizado, recolhendo nossas partes com dignidade, como os tchecos e os eslovacos fizeram. Jamais como este horror que estão fazendo por aqui.”­­­­

(Por tantas rupuras, foi criado em Zagreb, por um ex-casal de artistas, o Museum of Broken Relationships)

Os salários

As diferenças econômicas entre os países da ex-Iugoslávia são enormes. Há 3 anos, por exemplo, eram assim os salários de professores universitários de cinema: na Eslovênia recebiam 2.000€, na Croácia 1.600€, na Sérvia 800€ e na Macedônia 300€. A comparação entre os valores foi feita em um congresso de cinema pelo Vedran, amigo croata que é professor da Universidade de Zagreb.

Mapa da Croácia

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ImageNo verão, as praias e mais de mil ilhas do litoral da Croácia ficam lotadas e caras, por isso fomos para as montanhas de Gorski Kotar, no centro norte do país. Descemos na estação de trem de Moravice, uma vila com população quase toda de sérvios. Nos hospedamos na casa de um professor universitário de cinema de Zagreb (que conhecemos no site couchsurfing), com espantalho, neblina, cogumelos e Rakia caseira.

De lá, seguimos para Zagreb. A capital croata, assim como a eslovena, parece uma cidade da Europa Ocidental, dada a forte presença cultural e arquitetônica da longa dominação austro-húngara.

Cabo de Guerra

Os eslovenos exigiam da Croácia um pedaço de mar.

Trieste, que fica hoje na Itália, já foi a cidade mais importante da Eslovênia.

A Sérvia queria o nordeste e uma parte da costa da Croácia, já que a maioria dos habitantes destes lugares era sérvia antes da guerra entre os dois países na década de 90.

Nesta mesma época, Sérvia e Croácia tentaram incorporar parte da Bósnia e Herzegovina a seus territórios.

Os bósnios dizem que Montenegro já foi deles.

O sul de Montenegro, o Kosovo e o oeste da Macedônia já foram parte da Albânia.

Para a Sérvia, o Kosovo não é um país, mas uma de suas regiões autônomas, junto com a Voivodina, que por sua vez também pode vir a se tornar independente.

Uma parte do que já foi a Macedônia é hoje Bulgária, outra é Sérvia e outra é Grécia. A Grécia, além do território, exige também o nome do país e tem uma região que se chama Macedônia.

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Herzegovina

No século XIV,  a região hoje conhecida como Herzegovina foi tomada do Reino da Sérvia e anexada ao da Bósnia pelo rei Tvrtko I Kotromanić. Depois de sua morte a dinastia se enfraqueceu, e o Grão Duque Sandalj Hranić e seu sobrinho, Duque Stefan Vukčić, passaram a governar o território, ainda que unido ao Reino bósnio. Stefan Vukčić se denominava Herzog (duque em alemão) de St. Sava do Reino da Bósnia. Foi em homenagem a esse governante, e ao seu título, que a região ganhou o nome de Herzegovina.
Acordos políticos foram feitos no século XIX para que Herzegovina nunca deixasse de fazer parte daquele reino, desde que também seu nome sempre constasse ao lado do da Bósnia.

Política bósnia

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Com o final da guerra, o território da Bósnia e Herzegovina ficou esfacelado. Em um acordo de trégua, 49%  do território do país foi destinado para os bósnios de etnia sérvia. Essa área se chama República Sérvia (Republika Srvska). No resto do território, os bósnios-croatas e os bosniaks (bósnios-muçulmanos) se misturam, constituindo a República Federativa da Bósnia e Herzegovina.

A política também ficou esfacelada, com seu sectarismo rotativo. Ficou determinado que a presidência deve se alternar entre as 3 etnias e, a cada 8 meses, o representante de uma delas assume o poder. Os 3 representantes são eleitos por voto direto, o bosniak e o croata pelos votos da Federação da Bósnia e Herzegovina, e o sérvio, pelos votos da República Sérvia. O Legislativo é representado pela Assembléia Parlamentar, formada por 2 câmaras: a dos Representantes (com 42 membros), e a dos Povos (com 15 delegados), ambas divididas igualmente entre representantes das 3 etnias.

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Só que, na prática, nada funciona. Se com um presidente só, as decisões  costumam ser lentas, com 3, tudo pára. No momento, o país se encontra praticamente sem governo. O sentimento geral é de um misto de indiferença e desilusão, algo como “não importa” ou “dá no mesmo”. E a corrupção é enorme: perguntei, por exemplo, para uma arquiteta se as cicatrizes de guerras nos edifícios não eram apagadas para que a memória do trágico seguisse presente; e ela disse que não. Contou que o país havia recebido muitos recursos externos para se reconstruir, mas que foi quase tudo desviado.

A taxa de desemprego do país é de 46%, o que incrivelmente não se reflete na criminalidade ou na miséria aparente. Talvez seja por terem uma sociedade em que a instituição da família é muito forte e em que a etnia/religião funciona como uma rede comunitária. Além disso, quanto contam com algum espaço físico,  sempre praticam a agricultura e o pastoreio de subsistência. E seguem assim se virando, reclamando, mas com a manutenção do estado de espírito sempre em alta.

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A cidade

ImageChegamos em Sarajevo depois de uma viagem noturna de trem, às 6:35 da manhã. Sentamos em um bar na estação vazia, a garçonete era jovem, simpática e fumava. A senhora na mesa ao lado tinha um lenço amarrado frouxamente na cabeça e fumava enquanto bebia café. As mulheres que cuidavam dos banheiros tinham maquiagens e cabelos anos 80, conversavam alto e fumavam. Na Bósnia, todo mundo fuma e o cigarro é ainda permitido em lugares fechados.

Pegamos um taxi – eles são baratíssimos -, e no trajeto até o hotel já se vê que Sarajevo é um lugar de encontros.

A cidade cresceu ao redor de si mesma, cada nova dominação rodeando a anterior como que para engolí-la sem negá-la. O centro histórico se chama baščaršija – pronuncia-se baxtcharxia – e é um bazar turco, com construções baixas e contínuas em ruas estreitas de calçamento. Nessa parte da cidade há mesquitas, uma antiga sinagoga e uma igreja ortodoxa miúda e linda. É uma área pequena, que termina bruscamente nas construções do período de dominação austro-húngara. As ruas nesse ponto ficam mais largas, os prédios mais altos e ornamentados, e ali estão as catedrais católicas e ortodoxas, grandes, compridas, apontando para o céu como os minaretes.

Depois vêm as construções comunistas – quadradas, cinzas, pesadas – e as avenidas largas, mais para ônibus do que para pessoas. Nesta mesma área, estão sendo construídos shoppings e prédios que os moradores tendem a achar exageradamente grandes. Cinco montanhas rodeiam a cidade toda, e casinhas que sobem por elas.

Esta mistura de estilos na arquitetura faz com que tudo pareça possível em Sarajevo. A cidade é livre, jovem, festiva. As religiões, vizinhas nos templos, são pouco visíveis nas pessoas. Apesar da maioria muçulmana, muitas mulheres não se cobrem e as bebidas alcóolicas são liberadas. Eles se afastam completamente do estereótipo islâmico. Como chegamos em Sarajevo no verão e no meio do festival de cinema, a cidade, por si só movimentada, estava ainda mais cheia, com filmes passado em 7 lugares diferentes e shows, festas, bares montados na rua.

Sarajevo é surpreendente – dá vontade de ficar sem contar os dias.

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Estilismos

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Quanto à maneira de se vestir, algumas coisas dignas de menção:

CAMISA PÓLO COM GOLINHA VIRADA:
Desde a Itália, e por todo os Bálcãs, as camisas pólo com a golinha virada para cima, tipo Drácula, estavam por toda parte. Representa a ala descontraída dentre os usuários de camisa pólo.
Um dia assistia a um jogo de futebol na TV e vi Cristiano Ronaldo com a gola do uniforme virada. Deve ter começado ali.

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TURBO FOLK STYLE:
O Turbo Folk seria algo correspondente ao Funk Carioca, ao Axé Music e mesmo ao Tecno Brega, em termos de tipo de tribo. Geralmente são mulheres hiper-siliconadas cantando em cima de uma batida folk/turca em versão eletrônica. Costumam clarear os cabelos, esbagaça-los de chapinha, usar muito ouro, couro, saltos gigantes, e sobrancelhas ultra-afinadas.
A estética masculina –Diesel Guys- vai para o cabelo espetado, cavanhaques esculpidos (às vezes sobrancelhas feitas), cordões de ouro e trenerkas (trainingscompletos em material sintético).

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MODA ISLÃ: Em Sarajevo, as jovens usam hijabs floridos e coloridos, como em Istambul. Nas regiões de população albanesa (Sul de Montenegro, Albânia, Oeste da Macedônia e Kosovo) as muçulmanas não têm o hábito de cobrirem os cabelos, se vestem como as brasileiras, mais ou menos.

MARAMA: Senhoras camponesas das três religiões (Católicas, Ortodoxas e Muçulmanas), costumam usar um lenço frouxo e colorido sobre o cabelo chamado Marama..
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ANOS 80: É muito comum ver mulheres com maquiagem forte, (azul ao redor dos olhos) como de aeromoças dos anos 80, e cigarro constantemente aceso. Os salões de beleza vivem lotados, com suas janelas-vitrine.
Se o corte de cabelo dos homens não for raspado militar, restam os mulets. Sempre espetados em cima.
Se me lembrar de algo mais, depois acrescento.

p.s.: Segundo a Vera, de Belgrado:“Por favor, não vai deixar ficar parecendo que todo mundo se veste assim! Explica que também tem gente que se veste normal!”
Explicando, então…

Vitrines

Tirana, Albânia

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As grandes lojas de marca (ainda) não chegaram na Albânia - vimos apenas um shopping, e ele estava em construção. A maior parte das lojas são de comerciantes locais e produtos chineses. Para comprar um sapato, por exemplo, é preciso ter a sorte de encontrar o seu número no modelo de que você goste no meio do amontoado aleatório, já que não existe estoque. O país vive as consequências da ditadura comunista que durou de 1944 a 1992 e foi uma das mais fechadas que existiram, ao contrário do socialismo aberto da Iugoslávia. E, como dá para notar, a cultura do casamento está em toda parte.

Shkoder, Albânia

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Pessoas fumando dentro de lojas, gaiolas com passarinhos por toda a parte, pobreza com janelas sem grades. Muitas vezes a Albânia parece o Brasil dos anos 80.

Sarajevo, Bósnia

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O cosmopolitismo de Sarajevo

Pristina, Kosovo

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O Kosovo, apesar dos mais de 45% de desempregados formais, é tomado de lojas de marcas internacionais, shoppings, pubs e cafés sofisticados com wifi. Talvez seja devido à forte presença estrangeira de pessoas da ONU, OTAN, ONGs, etc. Mais o dinheiro que cerca de 20% da população que vive fora do país envia para seus parentes, mais o dinheiro do crime organizado. E também há as divertidas lojas kosovo-albanesas.

parêntesis

Quando começamos nossa peregrinação pelos Bálcãs, saindo da Itália, tínhamos o plano inicial de postarmos diariamente o que fôssemos aprendendo pelo caminho.

Mas recebi uma proposta de livro para ilustrar, de uma editora do Brasil, que não pude recusar. Acabei ficando com pouco tempo disponível e combinamos de fazer dois blogs. Um só da Ciça, em tempo real, de fotografia e impressões (o diariamente) e este aqui, nosso, com temas mais variados sobre os lugares. Acabaram ficando complementares, às vezes até com algumas interseções.

Procuramos manter nos posts uma linearidade cronológica com relação ao nosso trajeto (Itália, Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Montenegro, Albânia, Macedônia, Kosovo, Sérvia, e agora Romênia), mas com uma visão do todo, que o distanciamento no tempo e no espaço acabou trazendo. Ficou menos detalhado, mas mais analítico.

Uma hora o blog nos alcança. Ainda que seja só em Istambul.

Comidas

A culinária da ex-Iugoslávia puxa para o vermelho, verde e branco. As cores fortes vêm dos pimentões, pepinos, tomates, maçãs, figos, pêssegos; o branco é do pão, da cebola, do cogumelo, do repolho, do iogurte e do queijo, e eles usam principalmemte o de cabra.

As comidas são levemente diferentes em cada país, mas muitas coisas se repetem pelo caminho. É o caso da šopska – pronuncia-se xopska -, uma salada de tomate, pepino, um pimentão verde bem   claro e queijo de cabra salgado ralado por cima.

Os pimentões vermelhos são preparados de várias formas: inteiros, em conservas de azeite e alho; recheados com arroz e carne moída; em saladas; misturados com um iogurte grosso. Na Macedônia,  fazem uma pasta chamada Aivar, e a mantêm em conserva para consumirem durante os meses mais frios.

O ćevapi – tchevapi – é uma espécie de kafta de carne feito na grelha e servido com pão e cebola. O da Bósnia e Herzegovina é o mais tradicional.

O burek parece um folhado, pode ser recheado de queijo, carne moída ou espinafre. É gorduroso e normalmente vem acompanhado de iogurte sem açúcar.

E o iogurte aqui é usado de diversas formas: acompanha pratos quentes, podendo ser misturado no preparo ou servido na mesa; é passado no pão; pode ser tomado como um suco. E tem diferentes texturas, das mais ralinhas às bem grossas.

Em todos os países, o café é o turco, quando o pó é misturado na água fervente e fica no fundo dos bules e das xícaras, já que não é coado. Algumas pessoas preferem nescafé misturado na água quente. A cachaça deles se chama rakjia, e geralmente é feita de ameixa, maçã, pêra, pêssego, marmelo, damasco, mel.

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Os Cemitérios de Sarajevo

ImageOs cemitérios estão por todos os lados de Sarajevo.

Em 1992, a Bósnia e a Sérvia entraram em guerra. Sarajevo foi então cercada pelos sérvios e ficou sitiada até 1995. Os moradores não podiam sair, as armas e alimentos não podiam entrar. Como o aeroporto, que era controlado pela ONU, não daria conta de todas as demandas da cidade, foi construído um túnel que a ligava ao mundo. Mesmo nele não era qualquer um que podia passar.

Neste período foram mortas 10.000 pessoas, a maioria delas enterrada às pressas, à noite, em covas rasas por toda a cidade – os cemitérios não tinham mais lugar e qualquer aglomeração virava um alvo fácil para os sérvios.

Com o fim da guerra, esses corpos foram transferidos para novos cemitérios, que não deixam que a tragédia tão recente da cidade seja esquecida – são centenas de setas com datas próximas apontando para o céu.

Mas há também os túmulos antigos, otomanos. Com a expansão da cidade, as áreas reservadas aos mortos foram alcançadas. Escolheu-se então não remover estas antigas sepulturas, e ao, redor delas, há praças e parques, sem cercas ou muros, e as pessoas circulam entre os túmulos.

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Titolândia

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Já mencionei algumas vezes Tito, mas volto ao tema pela constante presença do seu nome nos países da ex-Iugoslávia.

Ele nasceu onde é hoje território croata (na época, território austro-húngaro), de pai croata e mãe eslovena. Libertou parte dos Bálcãs da ocupação nazista e unificou povos, criando a República Federativa Popular da Iugoslávia, um país socialista, que governou de 1945 até sua morte em 1980, por causas naturais.

Se chamava Josip Broz. Dizem que criou o nome de guerra “Tito” como parte de sua estratégia unificadora, já que sua assinatura funcionava no alfabeto latino (usado na Eslovênia, Croácia e na Bósnia e Herzegovina), e no cirílico (usado na Sérvia, Macedônia e até recentemente em Montenegro, que o aboliu depois da independência da Sérvia), e seria então reconhecida em todos as seis repúblicas que compunham a  Iugoslávia.

Em 48, Tito rompeu com Stalin e adotou uma posição de neutralidade no contexto da Guerra Fria. Junto com Egito, China, África   do Sul e Índia, a Iugoslávia foi uma das principais representantes do Movimento dos Países Não Alinhados.

Nesta posição, ele se beneficiava da barganha dos dois lados do conflito, era um ótimo negociador.

ImageDurante o seu governo havia um alto nível social, com empregos, recursos e as pessoas tinham liberdade de viajar para onde desejassem, dentro e fora do país.

E que país! A Iugoslávia tinha de tudo. As ilhas croatas, as montanhas montenegrinas, três religiões em harmonia, cidades cosmopolitas, TV aberta (um amigo romeno contou que durante a terrível ditadura de Ceausesco, onde só havia na TV a programação estatal, algumas famílias romenas improvisavam antenas gigantes para sintonizar a farta programação de desenhos e filmes da TV iugoslava). Ou melhor, tinham quase tudo. Os iugoslavos não tinham liberdade para criticarem o governo. Os opositores do regime eram mandados para um presídio na ilha croata de Goli Otok, onde eram tratados terrivelmente. Além de movimentos separatistas eram reprimidos de forma violenta. Mas o terror que os iugoslavos viveram nos anos 90 os fizeram relevar qualquer porém a respeito de Tito. O sentimento geral é de nostalgia.

Talvez seu maior defeito foi o de ter tido um governo tão personalista. Ele era a Iugoslávia. Depois de sua morte, um sistema de rodízio de poder entre as 6 repúblicas que formavam o bloco foi adotado, assim como acontece hoje na Bósnia e Herzegovina. Cada ano um presidente deveria assumir. Daí, os sentimentos nacionalistas adormecidos acabaram sendo despertados e manipulados em prol de interesses políticos por personagens como o presidente sérvio Slobodan Milosevich, e o croata Franjo Tudjman e o resultado foi a pior guerra na Europa desde a II Guerra Mundial e o desmemembramento total do antigo país.

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Camiseta com a imagem de Tito em Rostuce, oeste da Macedônia.
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Imagem recortada de Tito em Nis, sul da Sérvia.

Fronteiras sociais

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Sarajevo é o lugar no mundo onde existe maior proximidade entre uma igreja católica, uma ortodoxa, uma mesquita e uma sinagoga.

Dizem que a cidade viveu em completa harmonia e integração até a guerra. Nos tempos da Iugoslávia, era comum as famílias se misturarem, havendo gente que festejava tanto o Natal quanto o Ramadã.

Hoje em dia Sarajevo é bem mais dividida (o centro histório é quase todo bosniak), apesar do convívio cordial. Jovens de etnias diferentes até ficam uns com os outros às vezes, mas os conflitos dos anos 90 (quando os sérvios cercaram a cidade por 4 anos) ainda estão muito presente na memória de todos. Muitos sabem separar a política do povo, se revoltam contra o governo da época, mas não contra a população. Até porque alguns sérvio-bósnios chegaram a lutar ao lado dos  muçulmanos, defendiam juntos a cidade. Mas também acontece de algum carro que tenha placa da Sérvia amanhecer com vidros quebrados.

Antes da guerra, Sarajevo contava com  cerca de 830.000 habitantes, hoje tem mais ou menos 300.000. Desses, 74% são bosniaks (muçulmanos sunitas), 12% sérvios (cristãos ortodoxos) e 7,5% croatas (católicos).

Fronteiras Movediças

Se fosse desenhar todas as fronteiras que já foram traçadas na região, seria melhor fazer uma animação, tão constantes foram as disputa de tantos povos pelo território.

Resolvi traçar um panorama bem geral dessa história, essencial para se entender os dias de hoje.

– No ano de 1000 a.C., a península era povoada por várias povos: Gregos, Ilírios (cuja língua possui um ramo único, e resultou no albanês), Trácios e Dácios.

Image– No séc. IV a.C., os romanos invadiram a região. Quando o Império Romano se dividiu, o Império do Ocidente ficou com o oeste, até o rio Drina, que divide hoje a Bósnia e a Sérvia. O leste ficou sob domínio do Império Bizantino. Essa divisão também separou o território religiosa e linguisticamente: a oeste, Católicos Apostólicos Romanos, de língua latina; e ao leste, Cristãos Ortodoxos gregos.

– No séc. VI e VII, com a queda do Império Romano no Ocidente, várias tribos bárbaras ocuparam a região. Ostrogodos, Hunos, Lombardos e principalmente Eslavos, vindos do norte. Eles se misturaram com os diversos povos locais, e seus descendentes viriam a ser chamados mais tarde de Eslavos do Sul (Iugoslavos). Assim, servos, croatas e eslovenos são, no fundo, formados pelos mesmos povos.

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– O Reino de Veneza conquistou vários pontos ao longo da costa, do séc. XIII até 1797, quando Veneza foi tomada pelas tropas napoleônicas.

– No séc. XIV, o Império Otomano, depois de derrotar os bizantinos, expandiu suas fronteiras, ocupando grande parte da região. Os turcos deixaram várias heranças de sua cultura, inclusive o islamismo entre os bosniaks, e o café turco entre todos.­  Eles foram perdendo poder e território no final do séc. XIX, quando a Sérvia conseguiu, depois de tantas batalhas ao longo de anos, sua independência. A queda total do Império  aconteceu com o final da I Guerra Mundial, em 1918.

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– Já o Império Austríaco começou a se expandir no norte da região no séc. XIV. Depois, no séc XIX, já como Império Austro-Húngaro, chegou até a Bósnia e partes de Montenegro. Também teve seu fim com o final da I Guerra, quando foi criado o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, sob controle da dinastia sérvia dos Kardjorfjevic. 11 anos mais tarde, passou a se chamar  Reino da Iugoslávia.

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– Em 1941 veio a invasão nazista. O Reino da Iugoslávia caiu, e o território foi dividido entre alemães, italianos e o Estado Independente da Croácia (fascista), criado neste período.

– Com o final da guerra, em 1945,  os Partisans de Tito criaram a República Federativa Popular da Iugoslávia.

– Depois da morte de Tito, em 80, movimentos nacionalistas cresceram por toda parte ao longo da década. Em 91, Croácia e Eslovênia declararam independência, e para isso acabaram entrando em guerra com a Sérvia (a Eslovênia, por apenas 10 dias. A Croácia, por 4 anos.) No mesmo período, a Macedônia se separou sem conflito.

– Depois de 4 anos de guerra, em 95, a Bósnia e Herzegovina conseguiu se tornar independente. Mas acabou sendo criado dentro do país a República Sérvia (onde vive hoje a maioria dos sérvio-bósnios).

– Em 2006, foi a vez de Montenegro se separar da Sérvia-assim como a Macedônia, através de acordos com a Sérvia.

– E finalmente, em 2008, o Kosovo. Também debaixo de guerra. Sua independência até hoje não foi reconhecida pela Sérvia e por países como Espanha, China, Grécia, Rússia e Brasil.

( Depois volto mais detalhadamente em alguns destes pontos. Assim como um post só com mapas, sobre o mesmo assunto…) ­­­­

Rosas de Sarajevo

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ImageSarajevo, que fica em um vale, foi cercada e ficou isolada por 4 anos. Entre 91 e 95, o exército da Sérvia a atacava diariamente. A ordem era: bombardeiem até que todos morram ou fiquem a beira da loucura. Mas eles sobreviveram e estão lá – as crianças já são adultas, os adultos, senhores. E, além de sobreviverem, são hospitaleiros, alegres, barulhentos.

Dizem que foi terrível, mas que, depois de certo tempo, acostuma-se com as explosões, a falta de comida, energia, água. Vive-se de um modo próprio em meio ao terror. Algumas crianças têm boas memórias daquele período, já que passavam os dias brincando com amigos e primos dentro de casa. Quando iam para aula, no inverno, cada um deveria levar um pedaço de lenha, já que o aquecimento tinha sido cortado por falta de eletricidade.

Um amigo disse que as melhores festas da história da cidade aconteceram naquele período, quando cada dia parecia o último. Ao mesmo tempo, contou que às vezes encontrava uma perna ou braço na porta de casa. Segundo ele, o mais terrível era o som que ouvia das pessoas mutiladas. Elas não gritavam ou demonstravam pânico, apenas gemiam baixo, como um pranto rezado, um lamento visceral.

E a cidade, que tem hoje uma vitalidade tão particular, também carrega suas cicatrizes: minas terrestres ainda não desativadas, prédios baleados, cemitérios por todos os lados e as chamadas Rosas de Sarajevo.

As granadas, quando explodiam, formavam um desenho circular no chão, com um centro mais profundo e buracos menores ao redor. Na época da reconstrução da cidade, os sinais de explosão deixados onde pessoas foram mortas por esse tipo de ataque foram cobertos por uma resina vermelha, criando formas que lembram uma flor e também uma poça de sangue. São as Rosas de Sarajevo. Espalhadas pela cidade, sem qualquer placa ou indicação. Como uma recordação singela de um tempo tão trágico. Sem o mesmo  impacto dramático dos cemitérios, as rosas apareciam sempre tão subitamente que me deixavam com a impressão de que eu nunca estava preparada para elas.

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Turismo de Guerra

Existe hoje em Sarajevo toda uma indústria que explora o turismo de guerra. Há pacotes para um dia na cidade de Srebrenica – Srebrenitza -, onde mais de 8.300 muçulmanos foram assassinados em 1995, no maior genocídio na Europa depois da II Guerra Mundial. Não sei como a população de lá deve receber isso. Tudo é ainda muito recente.

Há passeios ao Túnel da Esperança, construído durante o cerco à Sarajevo para ligá-la ao resto do país e garantir a passagem de pessoas e suprimentos, já que o aeroporto era controlado pela ONU e só tinham acesso aos vôos quem tinha muito dinheiro ou muita influência.

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Ou tours pelas ruínas onde aconteceram as Olimpíadas de Inverno de 84, sediadas na cidade.

Normal que exista curiosidade em ver esses lugares. Mas também me parece um tanto bizarro tudo isso virar um negócio (o mesmo acontece nos campos de concentração nazistas de Auschwitz, na Polônia, por exemplo). Por outro lado, pode ser visto como uma forma criativa de dar a volta por cima,  transformando cinzas em euros.

Exílio

Em Sarajevo ficamos amigos de uma arquiteta. Quando a Guerra da Bósnia começou, ela tinha 6 anos e uma irmã ainda mais nova. Como seus pais acharam que o conflito duraria só alguns meses, sua mãe levou as duas filhas para Dubrovnik, na Croácia, onde se refugiaram, e o pai ficou em Sarajevo, para tomar conta do apartamento e de parte da família.

A guerra durou quase 4 anos, e durante todo esse tempo a família ficou separada – a partir de um momento, sair da cidade ficou difícil e caro. Nos primeiros anos seus pais se falavam por carta ou telefone, depois todas as comunicações de Sarajevo foram cortadas.

Quando ela voltou a ver o pai, já tiha quase 10 anos.

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Musika

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A música dos Bálcãs virou moda na Europa e em outras partes do mundo nos últimos anos, depois que Goran Bregovic(h) fez as trilhas sonoras de alguns dos filmes do diretor sérvio-bósnio Kusturica. Bregovic na verdade faz uma coletânea de diversos ritmos dos Bálcãs, especialmente de música cigana (Rom).

Os ciganos influenciaram muito todo os Bálcãs, com sua cultura musical forte, espalhando estilo de um lugar para o outro. As festivas músicas trubaci (de instrumentos de sopro) tocadas em casamentos, com seus ritmos quebrados (ao invés da previsível batida 4×4 do ocidente).

Todos os anos, em agosto, acontece um festival  bem famoso de música do gênero na pequena cidade de Guce, na Sérvia. Um verdadeiro Woodstock balcânico.

Bregovic também gosta de resignificar estilos. Gravou recentemente com Florin Salam, um representante do Manele*, considerado muito brega na Romênia (algo como o Caetano gravando “Tapinha não dói”…).

*O Manele é uma mistura de musica folclórica romena, com influência rom, turca, grega, e às vezes, árabe, em cima de uma batida eletrônica, com letras consideradas pobres pelas pessoas que conhecemos. Têm sua versão em cada país. Na ex-Iu, principalmente na Bósnia, Sérvia, Montenegro, Macedônia é chamado de ‘Turbo-Folk’. Na Bulgária, ‘Chalga’. Também está presente na Albânia e na Grécia. Estes estilos e a moda que os acompanha teriam como paralelo no Brasil o ‘Funk Carioca’, ou o ‘Tecno- Brega’.

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Gjyste Vulaj, em outdoor na praia de maioria albanes de Ulcjni, Montenegro.

Gjyste Vulaj é uma representante do Turbo Folk albanês. Ela é de origem albanesa, nascida em Montenegro. Aqui um link com uma palhinha (pegaria fácil no Brasil, se chegasse).

Na Sérvia, sempre que possível, as pessoas se levantam nos bares para dançar. Já na Bósnia, fomos reprimidos quando dançávamos uma música de ritmo um tanto alegre, mas cuja letra falava de tragédias. Síntese da alma bósnia, talvez.

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Dentre os ciganos romenos, uma banda de peso é a Taraf de Haidouks, mais de raiz. Estouraram no ocidente depois que o ator Johnny Depp os apadrinhou. Eles usam basicamente instrumentos de cordas.

Os romenos têm também a Doina, que significa algo como “saudade” (segundo eles, uma palavra que não se traduz, só existiria em romeno, como os brasileiros gostam de dizer).

ImageVale também mencionar a forte presença da música brasileira por toda parte. De seu Jorge a Maria Gadu, hit de verão em Montenegro e Macedônia. Em Skopje, mencionei que era brasileiro, e um macedônio, ao invés de dizer o nome de algum jogador de futebol, gritou: “Brasil! Ratos de Porão!!!!”

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Comédia de Erros, Tragédia Acertada.

ImageEm 1878 a Bósnia e a Herzegovina foram ocupadas pelo Império Austro-Húngaro, e anexadas a ele em 1908.

Muitos bósnios, no entanto, principalmente os sérvio-bósnios, preferiam pertencer ao recém criado Reino da Sérvia (nascido em 1882, depois que o principado da Sérvia conseguiu sua independência do então decadente Império Otomano, e que compreendia parte da atual Sérvia e a atual República da Macedônia).

Na época, existia uma sociedade secreta nacionalista sérvia chamada Mão Negra, que visava unir todos os territórios com população de maioria eslava do sul (iugo-slava). Era formada por muitos oficiais do exército sérvio, e por nacionalistas em geral.

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Carimbo oficial da sociedade secreta Mão Negra

Para alcançar seus objetivos, tinham que conter o imperialismo austro-húngaro na região de todas as formas. Foi assim que viram a visita do herdeiro do trono daquele reino, o arquiduque Franz Ferdinand, à recém conquistada Sarajevo, como uma oportunidade e tanto para alcançar seus objetivos:

Recrutaram 7 jovens de um grupo anarquista chamado Jovem Bósnia (cujos membros eram bósnios de etnia sérvia) para assassinar Franz Ferdinand. Até previam que isso poderia culminar em uma guerra, mas estavam confiantes, já que tinham o respaldo do gigante, e também Ortodoxo e eslavo Império Russo, que tinha grandes interesses na região.

Armados então de pistolas, e pequenas bombas, os jovens inexperientes aguardaram a carreata pelas ruas de Sarajevo. Então, uma sucessão de trapalhadas se desenrolou, no que foi uma genuína comédia de erros:

O primeiro atirador, Mehmed Mehmedbašić, hesitou e acabou deixando a comitiva passar, sem disparar um único tiro, paralisado que ficou diante da reforçada segurança.

O segundo, Nedeljko Čabrinović, atirou uma bomba na direção do alvo, mas acabou atingindo o carro seguinte, ferindo os passageiros e vários espectadores. Ele então engoliu sua pílula de cianeto e se jogou no rio Miljacka. Mas nem a pílula surtiu efeito, nem ele conseguiu se afogar no rasíssimo rio. Foi preso, depois de ser quase linchado pela população. O resto do grupo então se dissipou.

A comitiva seguiu assim, para a prefeitura. O prefeito de Sarajevo se desculpou e o atentado foi tratado como um fato isolado. Quando terminou a cerimônia, o arquiduque decidiu no meio do caminho de volta fazer uma visita às vitimas do atentado, no hospital da cidade. Foi quando, por acaso, um dos sete da jovem Bósnia, Gavrilo Princip, deu de cara com o carro de sua vítima tentando achar o caminho para o hospital. Não hesitou, e com apenas dois tiros acertou Franz Ferdinand e sua mulher Sofia. Os dois acabaram morrendo mais tarde.­ Gavrilo tentou também se matar, mas vomitou o cianeto, e teve a pistola arrancada das mãos pela polícia antes que conseguisse atirar.

ImageCom  isso, a Áustria-Hungria responsabilizou o Reino da Sérvia pelo atentado e, com o apoio do Império Germânico, impôs a ele uma série de demandas (Ultimato de Julho).

A Sérvia recusou a se submeter a uma delas (dar aos austro-húngaros o poder de fazer inquéritos dentro do território sérvio), e a guerra acabou de fato sendo declarada em 28 de Julho de 1914.  Ela durou até 1918. A Alemanha e a Rússia tomaram partido, e  eventualmente o mundo todo. No início foi batizada de “A Grande Guerra”. Hoje (depois da Segunda), de Primeira Guerra Mundial.

Depois da Guerra, os Impérios Russo,  Alemão, Austro-Húngaro e Otomano acabaram caindo. Os objetivos do Mão Negra, ao final, foram alcançados

Croácia, Eslovênia, Bósnia, Herzegovina – libertados do extinto império Austro-Húngaro- mais o Reino de Montenegro, acabaram se unindo ao Reino da Sérvia, no que foi  batizado de Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. Em 1929 passou a se chamar Reino da Iugoslávia. Durou até o fim da Segunda Guerra, em 45, quando se tornou a República Federativa Popular da Iugoslávia.

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A cena do crime.

A chegada em Mostar

Foi difícil sair de Sarajevo, de uma rotina criada tão rapidamente. Fomos para Mostar depois de 15 dias.

Chegamos e fazia muito calor, a cidade parecia feia. Caminhamos com as mochilas, um certo mau-humor, mas achamos rápido um quarto bom na casa de uma família bosniak, com flores e parreiras no quintal.

Já no primeiro passeio a ida fez sentido. O centro histórico, bem pequeno, é cinza, com ruas, casas, telhados e pontes de pedra. É um labirintozinho turco que se quebra para um e outro lado, com ruas estreitas lotadas de turistas e souveniers. E, cruzando e colorindo o centro, riachos cercados de árvores correm para o rio Neretva, grande, azul, transparente, gelado. O rio é lindo, algumas pessoas nadam nele, mas como todo esgoto da cidade é jogado ali, ele é poluído. O Neretva divide a cidade em duas.

A ponte que liga as margens foi feita no século XVI. Os turcos tinham o hábito de construir, nas cidades dominadas, algo monumental para marcar a ocupação otomana. Normalmente faziam grandes mesquitas, mas como Mostar era um ponto de passagem, construíram a Stari Most, ou ponte antiga. A cidade virou um importante entreposto do Império. E foi daí que surgiu o nome de lá: os guardiões da ponte, que cobravam as taxas para a passagem de mercadorias, eram os mostaris. Com mais de 20 metros de altura, forma de arco e pedras escorregadias, a ponte fez a cidade famosa já na época de sua inauguração.

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Ao longo do século XX, Mostar foi naturalmente se dividindo em duas partes, com um lado de maioria bosniak, muçulmana, e outra de maioria croata, católica. A Stari Most passou a ligar as duas metades da cidade.

No início da guerra da Bósnia, em 1992, bosniaks e croatas se uniram para combater os sérvios que bombardeavam a cidade, mas depois de um breve período passaram a guerrear um contra o outro, disputando parte do território bósnio onde viviam muitos croatas. Para marcar a divisão da cidade, os croatas destruíram a Stari Most em novembro de 1993. A reconstrução da ponte terminou em 2004, nove anos depois do fim da guerra.

Hoje em dia, todo final de julho há, na ponte, uma competição de saltos ornamentais e, no resto do verão, alguns moradores saltam dela depois de passarem o chapéu entre os turistas, que assistem ao pulo como a um espetáculo. Dizem que todos os jovens da cidade, para virarem homens, devem saltar da ponte.

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Etno-Soccer

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A primeira senha de wi-fi que recebi em Sarajevo, em um bar turco, foi “desouza”, sobrenome de Alex, ídolo do Fenerbahçe, time do lado asiático de Istanbul. Ele antes jogava no Cruzeiro, que por acaso é um time de Belo Horizonte, cidade onde nasci. Este fato aleatório e alheio a mim sempre trouxe grande vantagem no meu relacionamento com os turcos (principalmente para negociar!). Isto é, exceto entre os torcedores do rival, Galatasaray, time do lado europeu de Istanbul…

O futebol tem um enorme efeito diplomático. Mesmo sem assistir, é bom saber um pouco de geopolítica futebolística.

Na Bósnia e Herzegovina (BiH), como em muitos outros lugares, sempre que menciono ser brasileiro uma chuva de nomes de craques se segue (no caso das mulheres,  surgem personagens da novela “O Clone”, sucesso absoluto em todos os países da região). Mas no caso da BiH são citados especialmente os jogadores da Copa de 94, em que o Brasil foi tetra, como Romário, Bebeto, Edmundo, Branco, Dunga… Quando estranhei que eles tivessem acompanhado uma copa em plena guerra, me responderam: é claro! Ficamos sim, mais de um ano sem energia elétrica por causa da guerra, mas nós tínhamos gerador!

A copa foi uma forte forma de escapismo para eles. A Tropa de Libertação, que nunca chegava.

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Soube disso através de dois irmãos bosniaks  (bósnios muçulmanos) de Mostar, que assistem até mesmo nossos campeonatos estaduais. Lá, o futebol tem um fortíssimo peso político-étnico-religioso (na BiH é quase impossível separar estes 3 conceitos) . Os dois times locais de futebol representam os dois lados da cidade dividida. O Velez, de Mostar Oriental, é o time dos bosniaks (popular, definido por eles como mais de esquerda),  sua torcida organizada é a “Red Army Mostar”. E os HSK Zrinjki, de Mostar Ocidental, time dos croatas católicos (mais alinhado com a direita), cuja torcida são os Ultra Zrinjki. Quando eles se enfrentam precisam ser escoltados por um batalhão inteiro da polícia, para assegurar que a guerra não recomece das cinzas.

Ganhei de presente uma camisa da “Red Army Mostar”, que recebi como a um documento histórico.  Só me recomendaram ­jamais usá-la do outro lado da ponte!

Em Skopje (se pronuncia Skópia), capital da Macedônia, tem o mesmo tipo de apartheid. Mas, no caso, os muçulmanos são minoria e são ilírios (de etnia albanesa). Também separados por uma ponte (arquitetonicamente bem semelhante à de Mostar), da maioria Macedônia (eslava) ortodoxa. Novamente, assim como em Mostar, as torcidas organizadas  travam sua mini-grande ­­guerra.

Volto a falar sobre futebol, e seus desdobramentos políticos, mais adiante, quando começarmos a postar especificamente sobre a Sérvia.

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Figos e afins

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Na Bósnia e Herzegovina são comuns casas com hortas e plantas frutíferas como uva e kiwi, e sítios familiares com pequenas produções de legumes e rebanhos de cabras e ovelhas que produzem leite ou carne.

Assim, durante o verão, muito do que se come, como queijo, ovos, batata, cenoura, abóbora, é produzido na própria família. O que não se consome vira conserva para o inverno.

Em um país com desemprego acima de 40%, estas formas tradicionais de produção de alimentos ajudam a manter a qualidade da alimentação.

Monolitos

ImageEm uma região onde etnia, religião e nacionalidade são conceitos indissociáveis, os campanários das igrejas e os minaretes das mesquitas  funcionam como demarcadores de territórios.

É comum dezenas de minaretes uns ao lado dos outros compondo uma cena em cidades como Sarajevo e Mostar, mesmo a maioria dos muçulmanos destas cidades não sendo praticantes.

Mas nada se compara ao campanário de 100 m de altura construído depois da guerra da Bósnia, em Mostar Ocidental, para demarcar o território croata. Desequilibra completamente o panorama. E, claro, é visto pelos bosniaks mais do que como uma demarcação, mas como um provocação.

A propósito, perguntei  para as pessoas como era a relação entre os habitantes dos dois lados. Me disseram que não se frequentam tanto, mas que não existe problema em circularem de um território para outro. Também não é comum, mas acontecem de bosniaks terem amigos croatas, e vice-versa. Eventualmente os mais jovem até têm relações extra-étnicas, mas casamentos, quase nunca. Claro que existe a ala mais radical nacionalista que prega o ódio e o exerce principalmente através das torcidas organizadas de futebol.

Mas de modo geral as pessoas são relaxadas e festeiras. A mulher de um amigo bosniak  acha ridículo tudo isso. Me disse que está feliz mesmo é com o novo marco que está prestes a ser fincado em uma rua da cidade: um estandarte da Mc Donald’s!

Dubrovnik

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Dubrovnik era a única cidade-estado que rivalizava com Veneza no Adriático, durante os séculos XV e XVI, e, como esta, grande parte de sua riqueza vinha do comércio. Entre os séculos XIV e XVII, a cidade conseguiu se manter independente em uma região onde os territórios eram disputados por grandes impérios. Para garantir sua autonomia, fez acordos primeiro com os húngaros e depois com os turcos, pagando a eles impostos em troca de liberdade.

A decadência começou depois de um grande terremoto em 1667, que matou mais de 5.000 pessoas. Neste momento de fragilidade, a cidade-estado teve que vender parte de seu território aos otomanos – a pequena faixa costeira que hoje pertence à Bósnia. Na sequência foi invadida por Napoleão, em uma dominação que durou poucos anos e em seguida pela Áustria-Hungria, em 1815.

Com o fim da I Guerra Mundial, Dubrovnik passou a pertencer ao Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, que mais tarde viria a se chamar Reino da Iugoslávia. Durante um breve período da  II Guerra Mundial, integrou o Estado Independente da Croácia e, com o fim da guerra, a República da Iugoslávia.

Quando a Iugoslávia começou a se desmembrar, Dubrovnik se tornou parte da recém proclamada Croácia, já que quase 90% de sua população era croata. Em 1991, Sérvia e Croácia entraram em guerra. Apesar de ser uma cidade desarmada, exatamente para evitar ataques ao seu patrimônio arquitetônico, ela foi bombardeada por tropas sérvias e montenegrinas, que a cercaram e atacaram durante 7 meses. A guerra durou até 1995, mas só em 2005 a reconstrução de Dubrovnik terminou.

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A cidade fica no sul da Croácia, já bem perto de Montenegro, depois da pequena faixa de mar de cerca de 25 kms que pertence à Bósnia e divide o litoral croata. Dubrovnik, patrimônio mundial pela UNESCO desde de 1979, é um dos lugares mais visitados da costa do país, apesar de não muito conhecida no Brasil.

O centro antigo fica completamente rodeado por uma muralha de pedra, construída no século XII, que chega até o Adriático, muito azul, transparente e fundo. De diferentes portas deste muro é possível saltar no mar, de alturas diversas. As ruas são labirínticas, as construções grandes, e há diversas igrejas e imagens de santos espalhadas pela cidade e pela muralha. E como toda a Croácia, Dubrovnik é bastante católica.

Montenegro-Crna Gora


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Cruzamos a fronteira duas vezes no mesmo dia. Da Bósnia e Herzegovina para o pequena faixa de costa croata no sul da Dalmácia, onde está Dubrovnik, tivemos um dia de praia, e para evitarmos os altos preços veraneios daquela cidade, seguimos para Montenegro. Entramos no país pelo litoral, tendo como primeira base a cidade de Kotor.

Exceto por sua pequena faixa litorânea, Montenegro é um país extremamente montanhoso. Alguns amigos sérvios nos disseram uma vez que se esticasse o relevo montenegrino ele seria o maior país da ex-Iugoslávia.

Também tem a fama entre os vizinhos de terem sido os maiores guerreiros dos Bálcãs, havendo resistido bravamente frente a ocupação otomana, conseguindo se manter como principado autônomo. O relevo montanhoso teria sido um forte aliado em sua resistência. Quando mais tarde estivemos na Sérvia, ouvimos uma história que ilustrava esse espírito: em uma das tentativas de dominar a região, os otomanos teriam vencido uma batalha, e como é comum nas ocupações, estuprado várias mulheres locais. Quando retomaram a região e expulsaram e exterminaram os turcos, os guerreiros montenegrinos decidiram que todas as crianças, sem exceção, nascidas de suas mulheres seriam exterminadas. Queriam ter certeza que o sangue turco não ficaria infiltrado entre eles.

Em 1910, o principado decretou-se reino. Mas durou apenas até o final da Primeira Guerra Mundial, quando passou a fazer parte do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (que além destes 3 mencionados no nome, faziam parte também a Bósnia e Herzegovina e a Macedônia). 11 anos depois, em 29, o reino adotou um nome mais inclusivo, passando a se chamar Reino da Iugoslávia (ou reino dos eslavos do sul).  E com o fim da Segunda Guerra, República Federativa Popular da Iugoslávia. Montenegro passou a ser uma das 6 repúblicas que integravam aquele país, sob o comando de Tito, e com capital em Belgrado, Sérvia.

Com o desmoronamento da  Iugoslávia no começo da década de 90, através da declaração de independência da Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina e Macedônia  (todos por plebiscitos internos), somente Montenegro permaneceu unida à Sérvia (também o Kosovo, que ainda não era República, mas província autonoma da Sérvia). O país passou a se chamar República Federal da Iugoslávia. Em 2002, o nome Iugoslávia foi extinto de vez. A união destas 2 repúblicas foi mais uma vez batizada simplesmente de “Sérvia e Montenegro”. Em 2006, em um apertado referendo, os montenegrinos declararam independência da Sérvia.

Águias Bicéfalas

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Bandeira da Igreja Ortodoxa Grega, em Thessaloniki.

A partir de Montenegro, começamos a ver a  águia de duas cabeças  com enorme freqüência. Além de na bandeira montenegrina, estava presente na da Albânia (amplamente comercializada em diversos souveniers, tanto na própria Albânia como no Kosovo, cuja população atual é em grande maioria de etnia Ilíria-albanesa) e na da Sérvia. Na Grécia vimos com freqüência na bandeira da Igreja Ortodoxa Grega, geralmente hasteada ao lado da bandeira nacional. Herança do Império Bizantino (Romano do Oriente).

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Nas ruas da capital kosovar, Pristina, encontramos em uma feira esta bandeira bordada da Albânia, com mapa do Kosovo dentro

Existem vários registros arqueológicos da águia bicéfala datados de séculos antes de Cristo. Em regiões que vão desde a Índia; passando pelos sumérios, na Mesopotâmia; aos hititas, na Anatólia, hoje Turquia. Os Bizantinos, teriam se apropriado deste símbolo para representar seu poder e difundir sua cultura, língua e religião (gregas). Daí o seu uso em países até hoje de maioria ortodoxa, como Montenegro e Sérvia (que acabaram por criar suas próprias igrejas ortodoxas, independentes da grega), e mesmo a Rússia, que a usa não na bandeira, mas no brasão. A Albânia  a adotou durante a resistência contra as invasões otomanas.

Parece que ela acabou ficando bem popular em brasões no decorrer da história, assim como os dragões e leões. Muitas outras culturas e impérios acabaram a adotando, como o Germânico e o Austro-Húngaro, por exemplo.

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souveniers sérvios

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Grafite em Novi Sad, região da Voivodina, norte da Sérvia.

A Divisão do Império Romano, do Cristianismo e dos Bálcãs.

ImageMontenegro foi o primeiro país de maioria cristã ortodoxa em que entramos, apesar de termos visitado igrejas ortodoxas avulsas, tanto em Zagreb, de maioria católica, quanto em Sarajevo, de maioria muçulmana. Essas divisões religiosas são herança de quase mil anos, deixadas pelo Império Romano na região.

Por mais de três séculos o cristianismo foi considerado crime dentro do território romano, e seus praticantes muitas vezes acabavam jogados aos leões. Foi só quando o imperador Constantino ascendeu ao poder que a fé cristã foi legalizada, através do que ficou conhecido como Édito de Milão, no séc. IV.

Nessa época, vários povos guerreiros bárbaros estavam vindo do norte e, com isso, gradualmente Roma foi perdendo poder. Ao mesmo tempo, a cidade de Bizâncio (hoje, Istambul), já estava funcionando como um importante entreposto de comércio com o oriente, por sua posição super-estratégica. Por esses motivos, Constantino decidiu, no ano de 330, transferir a capital romana para Bizâncio, que foi rebatizada de Constantinopla, em sua homenagem.

Muitos cidadãos romanos ficaram descontentes com a mudança da capital. O Imperador Teodósio, na década de 390, estabeleceu então duas capitais, o que dividiu o império ao meio. Além disso, declarou o Cristianismo a religião oficial, e passou a perseguir pagãos. Após sua morte, seus filhos Honório e Arcádio herdaram o governo de Roma  e Constantinopla, respectivamente. Daí em diante, os dois lados foram progressivamente se separando.

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Mapa do Império Romano na época de sua divisão. À direita acima: o mesmo mapa, sobreposto às atuais fronteiras balcânicas. À direita-abaixo: Os rios Danúbio e o Drina, determinando os limites dos 2 Impérios.

Em 476, os bárbaros acabaram derrubando o último imperador romano do ocidente, Rômulo Augusto, e com isso, o poder na região se fragmentou entre diversos povos. Mas o catolicismo sobreviveu ao império. Muitos dos novos invasores foram se convertendo com o tempo, e o poder papal, a partir de Roma, cresceu gradualmente, reintegrando as diversas tribos Germânicas e Eslavas nos séculos seguintes.

Enquanto isso, o Império do Oriente (o termo Bizantino só passou a ser usado séculos depois) prosperava. E também buscava unificar seus domínios através da religião.

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Mapa de Constantinopla na época do Império Bizantino. Foto tirada na Aya Sofia, em Istambul, Turquia.

Com o tempo, as divergências políticas e culturais cresceram entre os dois lados.  O lado oriental  (que mantinha a tradição helenística clássica) não gostava nada do alinhamento que o papado de Roma havia estabelecido com o chamado Sacro Império Romano-Germânico, iniciado por Carlos Magno, no séc. 800 (e  que duraria até 1806, com as invasões napoleônicas). O lado ocidental não aceitava a exigência Bizantina da subordinação da igreja a um chefe secular, como acontecia em Constantinopla.

Precisavam de um estopim para justificar o rompimento. ­­ Foi quando no ano de 1054, o Patriarca Bizantino Miguel Cerulário veio com a questão (aparentemente um tanto nonsense) do Filioque. Argumentava que o Espírito Santo procede apenas do Pai, pelo Filho, e não do Pai e do Filho, como pregava Roma (?!). O Papa enviou então um cardeal para Constantinopla para resolverem esta questão. Depois de muita discussão, o cardeal acabou excomungando o Patriarca, que revidou, excomungando o Papa!

Era tudo de que precisavam para que o Grande Cisma acontecesse. A partir de então,  o ocidente seguiu com a Igreja Católica Apostólica Romana, de língua latina; e o oriente, com a Igreja Ortodoxa Grega, de língua grega. E dividiu para sempre os  povos dos Bálcãs.

O Império Bizantino durou no total cerca de mil anos. Entrou em um período de decadência, e acabou derrotado pelos turco otomanos, que ocuparam gradualmente seu território, e tomaram Constantinopla em 1453, marcando com isso o fim de uma era, que mais tarde veio a ser chamada de Idade Media.

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O Euro em Montenegro

ImageA moeda em Montenegro é o Euro, apesar do país não ser parte da União Européia e muito menos da zona do Euro.

Em 2000, as únicas repúblicas que tinham restado na Iugoslávia eram a Sérvia, incluindo o Kosovo, e Montenegro. O Dinar, moeda oficial, era completamente controlado pelo governo sérvio, bem mais forte do que o montenegrino. Naquele ano, como uma forma de afastar do nacionalista sérvio Slobodan Milosevic e se aproximar dos países da Europa Ocidental, o governo de Montenegro adotou o marco alemão. A utilização da moeda estrangeira era também uma tentativa de se desvincular da política econômica sérvia, com sua alta inflação e falta de direção bem definida.

Com o fim do Marco alemão em 2002, Montenegro seguiu a Alemanha e passou a usar o Euro.

Apesar de trazer vantagens – controle inflacionário, estabilidade, facilidade no comércio internacional -, há também grandes inconvenientes na adoção de uma moeda estrangeira unilateralmente. Por exemplo, não ter poder para desvaloriza-la quando necessário, o que tornaria seus produtos mais competitivos para a exportação, pode exigir medidas penosas, como a diminuição dos salários para consequentemente baratear a produção interna e assim atrair compradores internacionais. E países como Montenegro, com mercados internos muito pequenos, são ainda mais dependentes da exportação.

Nos Bálcãs, além de Montenegro, o Kosovo também adotou o euro unilateralmente.

Independência política, econômica, linguística e até alfabética.

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Alfabetos latino e cirílico montenegrinos.

Em 1992, quando a Iugoslávia pós Tito se desmantelava,  Montenegro, seguindo os passos da Eslovênia, Croácia e Bósnia e Herzegovina, realizou um plebiscito interno para saber se a população também era a favor da independência. Naquela ocasião, apenas 66% dos montenegrinos votaram. Desses, 96%  se declararam contra a separação.

A partir de 1996, no entanto, o  governo de Milo Dukanovich foi adotando medidas que isolavam Montenegro da Sérvia, como a independência econômica, através da adoção do marco alemão, por exemplo. Assim como o fato do alfabeto cirílico, uma marca de identidade, desde o século IX, dos países de maioria cristã ortodoxa, ter perdido gradualmente espaço para o latino. Em 2004, chegaram a alterar o nome da língua nos livros didáticos, de língua sérvia, para língua-mãe, o que gerou muita polêmica e protestos.

Até que no dia 21 de maio de 2006, um novo plebiscito foi realizado. Neste, 86% da população participou, em uma disputa difícil. 45,5 % contra a separação, 55,5% a favor. Apenas 0,5% acima do necessário para que Montenegro passasse a ser uma república autônoma. Tentei pesquisar porque a Sérvia não tentou evitar belicamente que tanto Montenegro quanto a Macedônia se separassem. Não encontrei respostas. Talvez por barganhas secretas, acordos econômicos, pressões estrangeiras, cansaço de outras guerras… Perguntando para as pessoas de lá, me disseram que pela proximidade cultural-religiosa  entre eles, que seriam aliados históricos, sem cicatrizes passadas. Talvez um pouco de cada coisa.

Em 2007 se declaram independentes linguisticamente da Sérvia. A língua dos dois países era basicamente a mesma, com pequenos regionalismos que as diferenciavam. Mas acabaram votando no parlamento a favor da criação do Montenegrino. Os defensores dessa mudança, assim como as principais instituições do governo, adotaram de vez o alfabeto latino, apesar de pela constituição, ele gozar do mesmo status que o cirílico.

E de fato, em nossa curta estadia em Montenegro, não vimos nem sinal do cirílico, a não ser nas igrejas.  Hoje, na região dos Bálcãs, ele é usado na Macedônia, Bulgária, Sérvia, e na região da Bósnia chamada de República Sérvia. Fora dos Bálcãs, em vários países da ex-URSS, incluindo a Rússia.

Mas volto a falar do cirílico e de sua origem em breve.

Rumos

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O itinerário da nossa exploração foi se desenhando à medida que seguimos. Muitas variáveis influenciaram na nossa decisão de que rumo tomar. O plano inicial, por exemplo, era de nos limitarmos aos países que fizeram parte da Iugoslávia, mas foi impossível resistir à curiosidade de explorar os vizinhos e a vontade verificar o que ouvíamos pelo caminho. Acabamos passando por todos os países que fazem parte dos Bálcãs. Muitas vezes, nos deixamos levar por conselhos de nativos e de outros viajantes sobre que lugares ir ou não ir. Aconteceu também de, por circunstâncias aleatórias ou convites repentinos, visitarmos lugares completamente inesperados.

De modo geral, a hospitalidade nos Bálcãs é algo incrível. Pessoas que conhecemos pelo caminho abriam não só as portas de suas casas como, algumas vezes, abriam mão da própria cama para nos hospedarem. Além das que conhecemos no mundo real, muitas foi através de um site chamado Couchsurfing. Para quem não sabe do que se trata, é uma rede social em que as pessoas oferecem desde informações sobre suas cidades até hospedagem por alguns dias, de graça. Acabamos achando casas deste modo em Trieste, Liubliana, Moravice, Zagreb, Tirana e Pristina, o que fez total diferença para conhecermos mais profundamente cada lugar, não nos limitando ao ponto de vista turístico. Só não conseguimos em mais cidades porque viajávamos em pleno verão, e a procura estava bem maior que a oferta. Na verdade, o Couchsurfing cresceu muito e está perdendo o caráter mais alternativo do começo, quando as pessoas estavam de fato interessadas no intercâmbio cultural. Hoje, muitos usam apenas como uma forma de se hospedarem de graça. Por isso, vários usuários estão migrando para outros sites menores do gênero, como o Bewelcome e o Hospitalityclub.

Podgoritza foi a primeira capital que acabamos não conhecendo. Vários viajantes e mesmo montenegrinos nos dissuadiram da idéia, ao descrevê-la como uma cidade muito cara e, ao mesmo tempo, urbanamente comum. Acabamos optando por seguirmos em direção à Albânia pelo litoral mesmo. E afinal era verão, e estávamos hipnotizados pelo Mar Adriático. Assim, acabamos parando em Ulcini, uma cidadezinha de maioria albanesa-muçulmana, no litoral sul de Montenegro, perto da fronteira com a Albânia.

Ulcinj, começo da Albânia

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Ulcinj fica no sul de Montenegro e acaba sendo uma parada obrigatória para quem quer ir para a Albânia por terra – a conexão entre estes países é péssima. Durante os 50 anos de ditadura comunista, a Albânia foi um dos países mais isolados do mundo e cortou as relações com todos os vizinhos.

De Kotor, uma das cidades costeiras mais visitadas de Montenegro, pegamos um ônibus para Ulcinj. Quando chegamos já não havia como ir no mesmo dia para Shkoder, que seria a nossa primeira parada depois da fronteira, e então teríamos que passar pelo menos uma noite por lá.

Ulcinj é uma antiga cidade pirata onde a maioria da população é albanesa – sendo o albanês a língua mais falada, apesar de não ser a oficial, que é montenegrino. De maioria muçulmana, é um lugar liberal, com praia de nudismo, bares e boates. Talvez pela proximidade étnica, é um destino turístico muito popular entre os kosovares, que também são de maioria albanesa.

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Ulcinj é banhada pelo mar Adriático, que é lindo. Na cidade, muito lixo espalhado pelas ruas; nas praias, areia escura e, no verão, muita gente. Olhada rapidamente, é um lugar sem muitos atrativos além de uma cidadela histórica murada bastante abandonada e praias de pedras um pouco mais distantes do centro.

Mas, de um dia, resolvemos ficar dois, porque não conseguimos alugar nenhum quarto que nos aceitasse por menos tempo. De dois, ficamos quatro, por gentileza das donas da casa onde nos hospedamos que, por acharem que não tínhamos visto o mais interessante da cidade, nos convidaram a ficar mais duas noites. E, de quatro, acabamos ficando oito, porque as duas vizinhas da frente, percebendo nosso interesse pela cultura local, nos convidaram a participar do Bayran, que é a comemoração do fim do Ramadã, o mês em que os muçulmanos jejuam durante todo o dia.

Foi em Ulcinj que pela primeira vez experimentamos a hospitalidade albanesa, uma das descobertas mais incríveis da viagem.

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Ramadã

­­ImageQuando começou o mês do Ramadã estávamos em Sarajevo, que entrou em um período de  efervescência, com mesquitas lotadas e clima de festa.

O Ramadã é um momento de purificação, de limpeza espiritual. Neste período, os muçulmanos devem se abster de água, comida, fumo e relações sexuais da alvorada ao crepúsculo. É também tempo de maior dedicação aos pilares religiosos, como a oração e a caridade. Corresponde ao nono mês do calendário islâmico, que é lunar. Em relação ao gregoriano, a cada ano ele acontece 11 dias antes e, em 34 anos, o praticante terá jejuado por todos os dias do ano.

Tanto em Sarajevo como em Mostar, na Bósnia e Herzegovina, pouco antes do sol se pôr filas se formam em frente às padarias, e um fogo de artifício anuncia para toda a cidade a esperada hora o desjejum, o Iftar. Daí, várias famílias se reúnem em volta das mesas nas varandas e terraços, para verdadeiros banquetes.

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O Islã é praticado de modo bem moderado em todo os Bálcãs, mais ou menos como o Cristianismo seria no Brasil. A maioria das mulheres vai  à praia, têm uma vida parecida com a das jovens brasileiras. Normalmente não usam véu e, quando usam, são hijabs (que cobrem apenas o cabelo) de seda, coloridos ou floridos. Toquei nesse assunto com uma amiga montenegrino-albanesa-muçulmana e ela primeiro se alegrou, com orgulho da moderação religiosa deles, depois se queixou da presença de alguns jovens estrangeiros de barba longa que circulam pelas cidades, que seriam Mujahedins, lá chamados de Vehabijes, e que fariam parte de uma rede para promover o radicalismo em regiões onde o Islã é moderado. Eles, por exemplo, pagariam às mulheres para cobrirem seus cabelos, entre outras coisas.

Entre os muçulmanos de quem fiquei amigo, o Ramadã é praticado de formas bem diversas: Salem, que fez parte do exército bósnio durante a guerra, come normalmente, mas tenta não beber álcool durante o dia.

Sasha, um jovem guia turístico de Mostar, apesar de pertencer ao lado muçulmano da cidade, renunciou à religião: “já fizeram mal o suficiente na nossa história usando religião como desculpa”. Celebra o Bairam (palavra turca que significa feriado, mas lá se refere à noite do “Eid al Fitr”, ou “banquete do fim do jejum”) como jovens ateus brasileiros celebram o Natal.

Ibrahim, um senhor que aluga quartos para turistas em Ulcini, normalmente vai à mesquita para rezar apenas nas sextas. Durante o Ramadã vai todos os dias, depois do Iftar.

Foram as festivas famílias do Ibrahim e de sua vizinha, a Vildana, que nos convidaram para estendermos nossa estadia em Ulcini para participarmos do Bairam, quando a lua nova desponta no céu. Nos preparativos, passam dias limpando e arrumando suas casas, compram roupas novas, recebem parentes de fora. Por três dias é feriado. As crianças ganham doces e dinheiro, e um banquete magnífico é servido para amigos e parentes (as baklavas, doce folheado recheado de nozes e pistache, são o ponto alto).

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Em Ulcini, na manhã do Bairan, os homens pela manhã rezam, depois comemoram dando tiros para o alto, antes de começarem com o grande festim.

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Reputação x realidade albanesa

Em todos os países por onde passamos desde que saímos da Itália, fomos desaconselhados a ir para a Albânia. No imaginário geral balcânico, seria um país extremamente perigoso. Esta opinião quase todos emitiam sem nunca terem estado lá, baseando-se no tipo de imigrantes albaneses deslumbrados que receberam depois que o super-hermético regime comunista caiu, em 1990; e no que os jornais com freqüência noticiam sobre os diversos setores do crime organizado albanês. Dizem que é a porta de entrada para a Europa da heroína vinda do Afeganistão; que é o maior produtor de maconha da região; que praticariam o de tráfico de humanos e de órgãos; e que assaltos e estupros seriam algo bastante comum.

Mas visto de perto, em nossa curta estadia no país, encontramos uma amabilidade que nos surpreendeu.

Todas as vezes que pedimos alguma informação, os albaneses faziam questão não só de nos informar, como de se certificarem que alcançaríamos nosso objetivo. Chegou ao extremo do garçom do primeiro restaurante em que almoçamos, ao pedirmos uma informação, se oferecer de nos esperar na porta do nosso hotel às 5:30 da manhã, com seu pai, para nos levar ao local onde pegaríamos a mini-van para o nosso próximo destino (já que não existem estações rodoviárias centrais, apenas pontos de partida espalhados pelas cidades). Fizeram ainda questão de pagar o nosso café da manhã, e só sossegaram quando nossa van partiu.

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Esse é só um exemplo da hospitalidade albanesa, presente até na cartilha de comportamento do extinto regime comunista, que continha inclusive regras de higiene, segundo nos contou a Sarah, uma americana que veio a nos hospedar mais tarde, na capital Tirana. Mesmo lá, que por ser uma metrópole, imaginamos que podia ser mais tenso, nos sentimos extremamente seguros. Ela nos levou, por exemplo, em uma balada underground de música eletrônica em uma escura estação de trem abandonada na periferia da cidade, de onde saímos tranquilamente caminhando às 4 da manhã. Sarah, que mora já há 2 anos na cidade, disse que jamais se sentiu insegura no país, o que se confirma pela ausência de grades e cercas elétricas nas casas e apartamentos. Aliás, que não vimos em todo os Bálcãs, independente de quão alta fosse a taxa de desemprego, algo que ainda estamos longe de alcançar no Brasil, que tem a fama generalizada na região de ser um paraíso na terra, e uma potência dos Brics.

Albânia

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Os albaneses são descendentes dos Ilírios e a língua albanesa, a única remanescente do ramo lingüístico Ilírico. Eles baseiam seu sentimento nacionalista em torno desta unicidade etno-linguística. Compartilham seu ilirianismo com os kosovares, com parte da região sul de Montenegro e do oeste da Macedônia.

ImageHistoricamente, os Ilírios foram dominados pelo Império Helenístico, de Alexandre, o Grande, por volta de 325 a.C., e cerca de 150 anos mais tarde pelo Império Romano. Com a divisão do poder de Roma, a região acabou ficando para o lado oriental (Bizantino). Durante a Idade Média, parte do território também foi ocupado pelo Império Búlgaro. Quando o Império Otomano chegou nos Bálcãs, os albaneses resistiram o quanto puderam à ocupação, sob a liderança de Scanderbeg, herói nacional bastante celebrado ainda nos dias de hoje (cujo brasão ostentava a águia bicéfala que deu origem à atual bandeira do país). Mas após sua morte,  ficaram sob o domínio dos turcos até 1912.

Depois disso, teve um período de monarquia, entre 1914 e 25; um de república, de 25 a 28; e outra monarquia, de 28 a 39; interrompida pela invasão da Itália fascista, na II Guerra Mundial.

Com a derrota italiana na guerra, um ditador comunista ascendeu ao poder: Enver Hoxha. Inicialmente aliado dos Partisans Iugoslavos, acabou rompendo relações com Tito em 48, temendo suas intenções de incorporar a Albânia à Iugoslávia. No mesmo ano se alinhou à URSS. Rompeu em 60. E de 64 a 78, buscou a proteção da China! Depois desta última ruptura, o país foi se isolando cada vez mais do resto do mundo. A população viveu sob um regime severo onde a religião foi oficialmente banida, onde ninguém entrava e ninguém saía.

Hoxha morreu em 1985, e o regime acabou caindo junto com o muro de Berlim, em 90.

Em 91, a Albânia se tornou uma democracia capitalista, mas ainda mantém vários resquícios de tantos anos de isolamento.

Para as montanhas

ImageO caminho para Theth começa às 7 da manhã em Shkoder, em frente a um café onde só homens se sentam. É lá que se pega a van para o trajeto chacoalhante de mais de 4 horas e meia para percorrer 90 km de distância. A direção é nordeste, sobe-se e desce-se montanhas e, no fundo de um vale, na beira de um rio transparente, está Theth, que não chega a ser nem uma vila.

As casas – talvez umas 20 – são separadas por plantações de milho e pequenos pastos divididos por cercas de madeira e ligados por escadinhas precárias, que não são mais do que ripas que sobem de um lado da cerca e descem do outro sem qualquer corrimão. Entre as casas, uma igreja com uma imagem de Madre Tereza de Calcutá. A escola é desproporcionalmente grande, vermelha, com desenhos da Disney pintados toscamente. Não há nenhuma venda, nenhum restaurante, nenhuma padaria. Para comprar, só café turco, amendoins e croissants industrializados, em um cubículo improvisado de 1×1 mt².

As casas têm cruz na porta e peles como tapetes. Na vila não há televisão, internet ou carros. Apesar das pessoas terem rádios e celulares, o lugar é isolado e autêntico. Theth é parte das montanhas e as pessoas que moram lá são parte da montanha.

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As mulheres passam o dia fazendo pão, cuidando da casa, cozinhando. Os homens cuidam dos bichos, dos assuntos de fora, fazem consertos. Lá trabalha-se o tempo todo em um ritmo lentamente constante. Os adultos não falam qualquer outra língua que não o albanês, mas se comunicam bem com sinais, papel e caneta. As crianças, mesmo as pequenas, falam inglês. As pessoas são silenciosas e o barulho mais recorrente é o dos sininhos no pescoço das ovelhas e da água do rio descendo nas pedras – e toda água perto dali é potável.

Às vezes à noite se escuta tiros, que podem ser dos pastores espantando lobos e raposas ou de algum fazendeiro do outro lado daquelas montanhas*, marcando seu espaço e reforçando o seu poder. Mas é um barulho distante e a noite é tão escura que chega a proteger.

Theth faz parte de um outro tempo – lindamente. E a qualquer momento pode deixar de ser como ainda é, quando a estrada até lá não for mais tão precária e os turistas descobrirem o caminho.

* A Albânia é a terceira maior produtora de maconha do mundo e as fazendas ficam principalmente nessas montanhas do norte do país.

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Sangue se paga com sangue

ImageFoi somente quando estávamos para partir que tomamos conhecimento do Kanun e dos feudos de sangue.

O Kanun é um código de conduta ancestral, que foi regulamentado pela primeira vez pelo príncipe albanês Lekë Dukagjini no século XV, apesar de suas regras já existiam desde bem antes da Idade Média. Se baseia em quatro pilares – honra, hospitalidade, conduta e lealdade aos parentes mais próximos -, e trata de todos os aspectos mais importantes da vida nas montanhas, como a organização econômica das famílias, a fraternidade, os clãs, as fronteiras, o trabalho, o casamento, as terras etc. O código é usado tanto por católicos quanto por muçulmanos e, parte da tradição oral do país, só no século XVI foi escrito pela primeira vez.

Mas o que mais surpreende nele é a parte que se refere aos feudos de sangue, ou crime de vendeta, que são guerras travadas entre dois clãs. Estes feudos são regidos pela lógica do olho por olho, dente por dente, e têm como ponto central a legitimidade de uma família matar, dentro de certas regras, todos os homens adultos de uma outra que desonrou ou assassinou um de seus membro sem um motivo justo, como legítima defesa. E então tem início a uma matança cíclica, já que ao ter algum parente morto, a família do executado também passa a ter direito de assassinar os homens da outra família. Os assassinatos, assim, só terminariam quando já não houvesse mais homens ou quando um clã perdoasse o outro, o que exige uma complicada negociação.

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Esta prática foi muito reprimida durante o regime ditatorial de Enver Hoxha. Com o colapso do comunismo, em 1990, e a precariedade do sistema judicial, eles foram retomados em algumas partes. Desde então, mais de 10.000 homens foram assassinados e mais de 1.000 crianças foram impedidas de ir para a escola, já que essa é mais uma característica dos feudos de sangue: a casa é um lugar que não pode ser invadido, então, o condenado que não consegue  fugir passa a viver em prisão domiciliar induzida.  Outra forma de proteção usada até o começo do século XX eram torres construídas nas vilas onde os condenados em feudos de sangue podiam se refugiar – e a de Theth ficava ao lado da casa em que nos hospedamos, chamando a atenção por sua forma diferente. É hoje um museu, e os feudos de sangue não foram retomados ali.

Mas isso é só uma parte do Kanun, que tem 1.262 artigos sobre como as pessoas deveriam se comportar. O que dizem é que hoje em dia o que se refere às vendetas está sendo interpretado de modo distorcido,  aplicado irresponsavelmente, com mulheres sendo também assassinadas, por exemplo, o que é proibido pelo código de conduta. Mas muitas pessoas ainda acreditam que o que está escrito no Kanun de forma geral tem a validade de uma lei e deve ser cumprido.

Mas nós, como viajantes, não vemos nada disso. Ficamos sabendo que os feudos de sangue ainda existem através de guias de turismo e pesquisas, já que o Kanun não afeta os turistas. De acordo com o Comitê Nacional de Reconciliação, uma ONG que busca acabar com a ocorrência de feudos de sangue, o governo albanês finge que este tipo de crime já não acontece mais, já que a prática é condenada internacionalmente e seria um grande empecilho à desejada entrada na União Européia.

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A torre-museu de Theth, e um casal montanhês.

Algumas regras do Kanun referentes aos feudos de sangue:

–  Quando alguém é morto, o assassino deve ir imediatamente até a família da vítima para não haver qualquer confusão em relação à sua identidade.

–  O assassino poderá circular a vontade durante a noite, mas com a primeira luz do dia ele deve se esconder.

–  Quem for fazer a emboscada deve ter consigo comida suficiente para ele mesmo e para quem mais o ajudar.

–  Só se pode matar como vingança um homem adulto, com força suficiente para empunhar um rifle em defesa, sendo com isso, proibido o ataque a mulheres, crianças, rebanhos e casas.

–  O assassino não deve ousar pegar a arma de sua vítima. Se ele fizer algo tão desonroso, irá incorrer em dois feudos de sangue.

–   O valor da vida de um homem é o mesmo, independente dele ser bonito ou feio.

Religiões Moderadas e Fundamentalismo Ateu

ImageA Albânia é vista de fora como um país islâmico, mas não é bem assim.

Como já escrevi aqui antes, a identidade nacional do país se dá mais através da língua e etnia ilíria do que pela religião, ao contrário do que acontece entre seus vizinhos iugoslavos. Não há dados oficiais atualizados, mas as fontes que encontrei estimam que, entre os que declaram pertencer a alguma religião, cerca de 70% são muçulmanos (grande maioria é sunita, mas existe uns poucos de um ramo turco do Islã chamado bektashi, originado da tradição Sufi), aproximadamente 20% são ortodoxos (ao sul do país), e 10% são católicos (ao norte). Mas a maioria das pessoas não é praticante.

Historicamente, o Império Romano foi o responsável por extinguir as diversas religiões pagãs das tribos Ilírias, impondo o catolicismo. Com a divisão do Império, no séc. XI, grande parte do país, que ficou para o lado Bizantino, se converteu ao cristianismo ortodoxo, com exceção do montanhoso norte do país, que conseguiu  permanecer católico.

Com a invasão Otomana, a maioria da população se converteu, ou fingiu se converter ao islã, já que com isso teriam uma série de privilégios, como a redução de impostos, por exemplo.

Em todos esses impérios, a religião tinham um forte poder de integração, de demarcação de territórios. Mas com a queda dos Otomanos, no final da I Guerra, e a chegada da monarquia, os regentes perceberam que a Albânia dividida, com tantas fronteiras invisíveis internas, como cicatrizes das dominações passadas, não seria simples de ser governada. Assim, iniciaram uma campanha pelo patriotismo secular, como Ataturk vinha fazendo na Turquia, com slogans como “Nossa religião é o Albanismo”.  Foi nesse período que começou a haver um resgate da Identidade Ilíria.

Com o comunismo, depois da II Guerra, o incentivo ao ateísmo virou imposição. Um governo fundamentalista ateu, que desapropriou igrejas, mosteiros e mesquitas, transformando-os em armazéns ou ginásios. Os católicos, considerados pelo governo como um resquício deixado pelos fascistas italianos, foram expulsos, quando não exterminados. A perseguição se radicalizou ainda mais em 67, quando a Albânia foi considerada a “Primeira Nação Ateísta do Mundo”. Materialismo científico compulsório.

Carne de porco era imposta em escolas e fábricas, para detectar os muçulmanos não declarados, ou empurrar-lhes o ateísmo guela abaixo; refeições diurnas eram servidas durante o Ramadã; e carne bovina, em períodos de jejum para os cristãos. Inclusive as casas das pessoas, território inviolável na tradição albanesa, eram revistadas em busca de objetos religiosos.

Enquanto isso, na Iuguslávia de Tito, a religião era proibida somente para membros do Partido. Na sociedade, cultos eram feitos com descrição. A prática religiosa era desestimulada, mas não proibida. Tito sabia que era impossível reprimir a fé até o fim, e que não seria vantajoso arriscar sua imensa popularidade de líder libertador tentando. Ele sempre procurou unir através da noção de iugoslavismo e em torno de sua própria imagem.

Com a morte de Hoxha, em 85, a tolerância foi gradualmente voltando, até que com a queda do regime comunista na Albânia, em 90, o país se tornou uma democracia secular e capitalista com total liberdade religiosa para a população. Muitos abraçaram a religião como simples símbolo de liberdade, sem de fato freqüentarem igrejas ou mesquitas.

Para a capital

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Conseguimos um sofá na casa de uma americana  em Tirana pelo (site de rede social de hospedagem) Couchsurfing. De Theth retornamos para Shkoder, passamos outra noite na cidade e, no dia seguinte, partimos para o sul. Acabamos percorrendo os 96 kms de táxi movido a gás, já que a corrida não ficou mais que o equivalente a R$ 30,00, e o calor do horário nos exigia agilidade. O cenário do caminho era bem seco, com vegetação rasteira e pouco movimento na estrada reta.

Tirana é a capital desde 1920. A anterior era a cidade portuária de Durres, a apenas 40 kms de lá. Chegamos no meio de uma tarde de sexta-feira, em busca do condomínio onde mora a Sarah.

Tirana

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Tirana é caótica.

A capital da Albânia parece uma cidade sem centro, com calçadas ocupadas por camelôs e bugingangas, dezenas de fios saindo dos postes em todas as direções e prédios desencontradamente coloridos para compensar os anos cinzas de comunismo.

A cidade, onde vive mais da metade da população albanesa, é barulhenta, com ruas cheias de crianças brincando e pessoas passeando enquanto suas casas se refrescam do calor dos dias de verão. Por todo lado, varais nas janelas e lixo no chão.

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Cortando Tirana, o rio Lana, que é pequeno mas dá frescor ao lugar. Ele é acompanhado por um gramado, parquinhos, muitas pontes, algumas árvores e por uma avenida grande que parece ligar todos os pontos da cidade.

O trânsito é conduzido por novos motoristas – até 1992 haviam cerca de 2.000 carros no país e hoje são mais de 500.000 -, e fica ainda mais confuso quando uma carreata enfeitada, circulando devagar e buzinando, segue o carro – e algumas vezes carruagem – dos noivos, na comemoração de algum dos muitos casamentos. Na Albânia, se casar é um sonho presente nas conversas e nas vitrines.

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Verticalidade

Tanto na Europa Ocidental, como entre seus vizinhos balcânicos, os albaneses são, em geral, bastante discriminados e mal-vistos; mas quando finalmente estávamos na Albânia, foi curioso constatar que também eles inferiorizam uma minoria dentro do seu território: os discriminados dos discriminados, que eles chamam de “Blacks”, são na verdade povos ciganos, de origem indiana. Em Shkodar, viviam em um pequeno bairro pobre, separados da cidade por uma ponte, que nos alertaram a não ultrapassar. Foi o nosso primeiro contato com ciganos, que eram bem mais comum na Iugoslávia pré-guerra, e acabaram se exilando para diversos países durante aquele período. Só viríamos a ouvir falar deles novamente mais tarde, na Sérvia, pela enorme influência musical, e depois, na Romênia, por sua forte presença física e cultural naquele país.

Já os norte-americanos são, ao contrário, super-admirados pelos albaneses, em geral. No jogo de xadrez balcânico, EUA são historicamente aliados dos bosniaks e albaneses (incluindo kosovares), ou seja, do lado supostamente muçulmano dos Bálcans; a Alemanha, dos católicos (eslovenos e croatas); e a Rússia, dos ortodoxos (sérvios e gregos). Os americanos não só ajudam os albaneses economicamente, com doações constantes, como militarmente, interferindo contra os sérvios e a favor dos albaneses-kosovares na guerra de independência do Kosovo (volto neste assunto mais tarde, quando começarmos nossos relatos sobre o Kosovo).

ImageAssim, existe em Tirana uma rua no centro da cidade chamada George Bush, e em Prístina, capital do Kosovo, pelo menos um boulevard e uma estátua em homenagem a Bill Clinton.

Endereços sonetos

Foi a Sarah, uma amiga americana que nos hospedou, que contou que faz apenas um ano e meio que as ruas de Tirana têm nomes. E eles ainda são pouco usados, claro, já que ninguém reconhece os lugares a partir dessa nova forma de chamá-los. Mesmo em cartas, o que ainda se faz é descrever os endereços a partir de um ponto de referência conhecido – pode ser uma avenida, uma loja, um colégio – e então segue-se o caminho: descer o boulevard da estação até o rio, pegar a direita, virar na esquina da oliveira grande, casa azul número 47. Quando se tem sorte de morar perto de alguma coisa famosa fica fácil: ao lado do cassino. Deve ser por essa precariedade que é muito comum as correspondências se perderem por lá.

E foi assim que descobri que endereços são novos em muitos lugares. Depois de 3 meses, ficamos na casa de um casal de amigos em Istambul e eles moravam em uma rua sem nome, apesar disso não ser comum naquela cidade tão cosmopolita. E foram eles que me contaram que endereços como conhecemos são relativamente recentes na Turquia e era comum em pequenas vilas acharem impossível dar às ruas um nome, já que não havia moradores suficiente famosos em cada uma delas para merecer nomear o lugar. Eles acreditavam que se uma rua se chamasse por exemplo Atatürk, o grande herói nacional turco, significava que ele tinha uma casa por ali. Mas isso pode também ser só uma lenda turca.

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Contra o inimigo imaginário

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Quando ficamos sabendo melhor o que eram os bunkers albaneses percebemos que o que achamos que eram carvoeiras enfileiradas, no caminho de Shkoder para Theth, eram os chamados cogumelos de concreto.

Feitos pelo comunista albanês Enver Hoxha, são cerca de 750.000 bunkers de concreto e metal, praticamente indestrutíveis. Eram pré-frebicados e tinham metade de sua estrutura enterrada, enquanto a outra metade aparecia do lado de fora como uma abóbada cinza. De tamanhos diferentes, estes cogumelos de concreto podiam abrigar de uma a dez pessoas, e havia espaço neles para o país inteiro, com seus 3 milhões de habitantes.

Os bunkers foram construídos entre 1972 e 1985, enquanto o ditador isolava cada vez mais a Albânia do resto do mundo – primeiro rompeu com todos os países capitalistas depois da II Guerra Mundial, depois com a vizinha Iugoslávia em 1948, com a morte de Stálin, em 1960, deixou de ter relações com a URSS e, finalmente, com a morte de Mao, rompeu com a China, em 1978. Hoxha se sentia paranoicamente ameaçado de todos os lados, mas a invasão nunca chegou a acontecer.

Com o fim da ditadura e a abertura do país na década de 90, os cogumelos de concreto perderam não apenas sua suposta função, como também seus donos. Destruí-los é muito difícil e caro – foram projetados para agüentar o ataque de um tanque de guerra e são muito pesados -, e haviam bunkers em todos os lugares: propriedades privadas, praias, montanhas, campos, cidades.

O mar, com as marés e a instabilidade da areia, carregou alguns deles, as pessoas transformam outros em restaurantes, adegas, chalés, hotéis, cocheiras, muitos foram pintados, alguns são usados como motéis, outros viraram casas de sem teto, mas a grande maioria está abandonado
, sendo engolida pelas plantas e o tempo.

Os bunkers são verdadeiros pontos turísticos, mas os albaneses preferiam que eles não existissem – além de serem a memória concreta de um tempo difícil, custaram cerca de € 2,2 bilhões, contribuindo bastante para a ruína da economia do país.

Foi surpreendente termos visto tão poucos. Depois dos que confundimos logo que chegamos na Albania, só vimos mais um, já na Macedônia, bem perto da fronteira entre os dois países.

(Aqui um trabalho incrível sobre os bunkers)

Rumo à Macedônia

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Antes mesmo de entrar na Albânia, havíamos conseguido hospedagem em uma casa em Saranda, no litoral sul do país, já bem perto da Grécia. Ouvimos maravilhas sobre a cidade, mas a viagem para lá demoraria umas 8 horas e depois teríamos que rumar novamente para o norte para conhecermos a Sérvia – peça indispensável na nossa exploração dos Bálcãs -, que além de ficar cada vez mais distante ainda tinha a questão do visto: a Sérvia é o único país balcânico para onde precisaríamos de um. Como no começo não sabíamos ainda que trajeto faríamos, tiramos nossos vistos ainda em Liubliana, capital da Eslovênia. Naquela altura da viagem, 1 mês e meio já havia se passado, e o visto, de duração de apenas 3 meses, já estava correndo, e dali a outro mês e meio devíamos deixar a Sérvia. E havia ainda a Macedônia e o Kosovo pelo caminho, antes de chegarmos lá.

Foi quando decidimos penosamente sacrificar o sul da Albânia e irmos direto para o lago de Orhid, do qual havíamos ouvido falar poucos dias antes. Pegamos uma mini-van até a fronteira. Lá, alguns táxis ficam à espera de viajantes, e mesmo cobrando acima da tabela, a viagem não ficou tão cara quanto temíamos que pudesse ficar pela falta de outras opções: em torno de 20 euros para os cerca de 30 kms de estrada + 10 minutos de alfândega. Chegamos em Orhid pensando em ficar por uns dois dias, mas nos pareceu um lugar perfeito para descansar e começar a postar o que havíamos escrito, desenhado e fotografado até então. Acabamos ficando por 2 semanas.

Trajeto Parcial

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Antes de prosseguir, uma pausa para uma visão panorâmica do caminho até então.

No total, passando 4 meses e meio na região. Este é o trajeto percorrido em quase dois meses. O percurso completo, cujo destino final foi Istambul, pode ser visto no link, no topo desta página. Uma hora o blog nos alcança! No momento estamos em Bagalore, na Índia, digerindo o que vivemos, enquanto a memória de tudo ainda pulsa.

Mas voltemos para a Macedônia…

Alexandar or not Alexandar?

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Para falar deste país localizado entre a Albânia, Grécia, Bulgária, Kosovo e Sérvia, é preciso primeiro decidir como chamá-lo.

Macedônia é o nome de um antigo reino que dominou a região que hoje faz parte da Sérvia, Bulgária, Grécia e, é claro, Macedônia.

Quando Alexandre, o Grande, filho de Felipe II, tornou-se rei, em 336 a.C., ampliou a extensão do seu território, conquistando quase toda a Grécia, grande parte dos Bálcãs, parte do Oriente Médio, Egito, Anatólia (atual Turquia) e Pérsia (atual Irã), de modo impressionantemente veloz. Apenas 13 anos depois ele morreu, aos 33 anos de idade, interrompendo a expansão macedônica, cujo império (conhecido como Helênico) perdeu espaço mais tarde para os romanos.

A Grécia não admite que o vizinho use o nome que eles consideram como parte inseparável da cultura grega. Argumentam que os eslavos, que chegaram na região mil anos depois de Alexandre, não teriam nada a ver com o assunto. Quando a Iugoslávia se despedaçou, em 91, os gregos determinaram que aceitariam, no máximo, que o novo país fosse admitido na ONU se usasse o nome, por eles criado, de FYROM (Former Yugoslavian Republic of Macedonia). E assim foi, inclusive por órgãos internacionais como a OTAN, o FMI e o COI (no entanto, hoje, mais de 100 países se referem ao país como Macedônia).

Mas por trás desta proteção ao nome, reside uma proteção territorial. Existe uma região no norte da Grécia batizada por eles de Macedônia (antiga Macedônia Egéia), que foi conquistada em 1913, no que ficou conhecido como Segunda Guerra Balcânica. Eles temem que, caso os vizinhos tenham o nome Macedônia como oficial, eventualmente se legitime uma reapropriação. Assim, com a disputa pelo nome, foi criada uma rivalidade em torno deste tema artificial, que separa culturalmente os dois lados, a ponto de ser raro o intercâmbio turístico entre os dois países.

Do lado macedônio também existe o interesse territorial, assim como o da construção de uma identidade. O país gira em torno da figura de Alexandre.

Este tema é o maior empecilho para a entrada da Macedônia na União Européia, cujos critérios de adesão não admitem desavenças diplomáticas entre vizinhos.

Aqui no blog, decidimos, em questões de complexidade política, seguir o consenso interno das regiões em questão. Daí, reconhecemos, por exemplo, o Kosovo nos mapas como um país, assim como a República da Macedônia como um nome.

Ohrid

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O lago Ohrid é um dos mais antigos do mundo, e eu nunca tinha pensado antes que os lagos tinham idade. É o encontro da Albânia com a Macedônia, azul, transparente, morno, suave.

A cidade mais famosa dele fica do lado macedônio, e tem o mesmo nome lago. Quem mora por lá gosta de dizer que é a Jerusalém Ortodoxa, onde um dia já houve  uma igreja para cada dia do ano,
além de ser o lugar onde o alfabeto cirílico atual foi criado. E, como se não bastasse a beleza e a fama –
Imageé um dos poucos lugares do mundo que é patrimônio cultural e natural do mundo, pela UNESCO, ao mesmo tempo -, uma lenda local, que não consegui confirmar em lugar algum e que provavelmente deixaria os gregos indignados, diz que Dionísio, o deus grego do vinho e das festas, nasceu ali. Tendo ou não nascido, há um pequeno santuário dedicado a ele, com mosaicos com imagens de animais, uvas e suásticas, construído nos tempos da Grécia antiga.

Chegamos em Ohrid em setembro, e o Marion, que nos alugou o quarto, disse que era a melhor época do ano: “damos o verão aos turistas, quando trabalhamos e ganhamos dinheiro, e pegamos setembro para nós”. Depois da temporada, as praias ficam vazias, o calor diminui, os dias são lindos.

ImageE já no primeiro dia descobrimos nossa praia escondida, de pedrinhas arredondadas e sem quase ninguém, onde fizemos amigos macedônios inseparáveis pelos 15 dias que ficamos na cidade. Em um dos últimos, tivemos que dividir nosso pequeno paraíso com uma equipe de cinema, que gravava cenas de um filme sérvio-macedônio. Eles chegaram lá com lanchas e outros aparatos, tirando um pouco do silêncio, dando um pouco mais de emoção.

Arestas

ImageA disputa entre a Grécia e a Macedônia em torno do legado de Alexandre, o Grande respingou na bandeira adotada pela República da Macedônia quando ela se separou da Iugoslávia, em 91. O recém criado país estampou sobre o fundo vermelho da nova bandeira o “Sol de Vergina”, ou “Estrela Argeada”, uma estrela de 16 pontas descoberta por arqueólogos em 1977 em Vergina, cidade da Macedônia grega, e que teria sido usada como símbolo pelo exército de Alexandre.

Os gregos, que desde a descoberta vinham usando a imagem sobre um fundo azul em prefeituras e outras oficialidades da região da Macedônia grega, ficaram furiosos com a apropriação dos vizinhos do norte. E também não gostaram da escolha os albaneses macedônios, que se sentiram excluídos com a escolha de um símbolo que ignorava completamente o lado ilírio do país.

A batalha pelos direitos de uso do símbolo se estendeu até 95, quando a ONU resolveu intervir para estabilizar as tensões diplomáticas e econômicas. Propuseram que a imagem fosse substituída pelo sol de 8 raios, imagem também encontrada em escavações na cidade macedônica de Kratovo.

E assim se deu, apesar de alguns nacionalistas macedônios mais efusivos insistirem em usar, extra-oficialmente, a de 16.

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Primeira e Segunda Guerras Balcânicas

ImageEntre 1912 e 13, Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária se uniram na chamada Liga Balcânica com o objetivo de expulsar um inimigo comum, os invasores otomanos, que já estavam há cerca de 500 anos na região. Acabaram vitoriosos, e como combinado previamente, dividiriam entre si o território da atual Macedônia, libertada dos turcos. Também como consequência, o estado independente da Albânia foi criado, por pressões da Austro-Hungria, que não queria que a Sérvia tivesse acesso ao mar e se tornasse uma potência na região, competindo com seus interesse.

Mas  nesta partilha,  a Liga não conseguiu entrar em um acordo. A Bulgária, na época o mais poderoso dos quatro países, queria uma parte maior da atual Macedônia, além da cidade de Salônica (hoje, Tessaloniki, na Grécia). A Sérvia e a Grécia se uniram então contra a Bulgária, que também ambicionava partes da Romênia e Turquia. Assim, ainda em 1913 deu-se início à Segunda Guerra Balcânica.

Tentando atacar por todos os lados, a Bulgária foi derrotada, e perdeu os territórios que havia conquistado na guerra anterior. Assim, a Sérvia ficou com a parte norte da Macedônia, e a Grécia, com a parte sul. E os ecos dessas batalhas até hoje se fazem sentir.

Natal e Calendário Ortodoxo

ImageEm 46 a.C., Júlio Cesar modificou o antigo calendário romano por perceber um lapso crescente entre os dias marcados e as estações do ano. Para resolver o problema, entre outras modificações, 2 novos meses foram acrescentados. Alguns anos depois, o Imperador Augusto fez outros pequenos ajustes.

Em 1582 percebeu-se que a cada 128 anos os equinócios, no calendário, ficavam um dia mais distantes do que o que correspondia à realidade. Por isso, o Papa Gregório XIII convocou uma equipe que, depois de vários cálculos astronômicos, chegou a uma solução: dali em diante, os anos seculares (1600, 1700, etc…), com exceção dos múltiplos de 400, não deveriam ser bissextos. Como a iniciativa partiu de um papa, somente os países de maioria católica a adotaram na época. Com isso, foi resolvido o desajuste dos equinócios, mas acumulou-se uma diferença de 13 dias em relação ao calendário juliano, que continuou sendo usado pelos países de maioria ortodoxa.

Hoje, em vários países cuja maioria segue outras religiões adotou-se o calendário gregoriano. Nos balcânicos de maioria ortodoxa também, com a exceção das datas religiosas. Assim, o Natal, por exemplo, é celebrado no dia 07 de janeiro. E o Ano Novo é comemorado duas vezes: na noite de 31 de dezembro e em uma festa menor em 13 de janeiro, que eles chamam de “Velho Ano Novo”.

Existiam variantes na maneira de celebrar o Natal na ex-Iugoslávia, dependendo da região e da religião. Durante o comunismo, Tito tentou abafar o caráter religioso da festa, importando a figura do Papai Noel com o nome de Dedo Mraz (Vovô Gelo )para distribuir doces e outras pequenas coisas fornecidas pelo governo, só que na noite de ano-novo. Com isso, buscava a simpatia do povo para si, propagava o caráter ateu do comunismo e minimizava as diferenças religiosas em uma Iugoslávia multi-cultural carente de interseções unificantes.

Mas com a queda do regime, em 91, o Natal voltou a ser tratado como uma festa puramente religiosa.

Lenda da Resistência

ImageUmas das coisas que mais gosto nas cidades antigas são suas lendas. Ohrid tem algumas, como a da Igreja de St. Kyriakia, que os otomanos queriam transformar em mesquita ao invadirem a cidade, no fim do século XIV. Para ser uma mesquita, a igreja precisava de algumas reformas e de um minarete, que foi construído e depois desabou, foi então reconstruído e mais uma vez desabou, e assim seguidas vezes. Aí os turcos experimentaram recolocar a cruz da ex-igreja no recém erguido minarete e ele então ficou de pé. E está lá até hoje, misturando duas religiões em um único prédio.

Ficamos sabendo dessa história logo antes de partirmos de Ohrid, por isso nem vimos nem tiramos fotos dessa mesquita – ficamos com a descrição do nosso amigo Jean. Mais uma vez, havia chegado a hora de ir embora.

Vizinhos

ImageConheci Vasko e Aleksandar na pista de skate do lago Orhid.

O sonho dos dois é de um dia irem trabalhar na Itália, ou em qualquer outro país da União Européia, o que mesmo na crise compensaria diante da fraquíssima situação econômica da Macedônia. Para isso, precisariam de um visto de trabalho, ou, como planejam, de conseguir um passaporte europeu, no caso búlgaro, que segundo eles pode ser adquirido pagando um valor de 500 euros. A Bulgária ingressou na UE junto com a Romênia, em 2007.

Perguntei porque era tão fácil obter o passaporte búlgaro, e o Aleksandar prontamente respondeu: “Porque eles nos odeiam. Os gregos dizem que nos odeiam, mas os búlgaros nos odeiam”. Continuei sem entender, e ele desenvolveu, dizendo que ao adquirir o passaporte de lá, os cidadãos macedônios gradualmente constariam nas estatísticas como búlgaros, o que legitimaria uma futura expansão de território da Bulgária. Não sei se a informação é verdadeira, mas achei interessante relatar como registro de como eles enxergam seus vizinhos.

ImageProssegui minha investigação, e o mesmo sentimento defensivo existe em relação ao expansionismo grego e albanês.

A Albânia está a apenas 30 kms dali, do outro lado do lago. Ao perguntar se algum deles já havia cruzado a fronteira, Vasko me contou que apenas uma vez, para nunca mais voltar. Quase foi linchado por um grupo de albaneses porque estava conversando com uma mulher de lá.

Quando viajam, os macedônios geralmente vão para a Sérvia, para onde eles olham com uma certa admiração. Sempre que mencionamos para macedônios eslavos que o próximo país que visitaríamos seria o Kosovo, nos perguntavam o motivo da ida com total espanto. Nos aconselhavam a não ir, cheios de advertências quanto à falta de segurança e avisos para nunca tentarmos falar de política. Por outro lado, jovens macedônias de origem albanesa costumam passar fins de semana em Pristina, capital kosovar, onde podem se soltar mais nas festas, longe do olhar conservador de suas famílias muçulmanas.

Interessante notar também que os macedônios, como outros países dos Balcãs, se referem à Europa na terceira pessoa, como se pertencessem a um outro continente.

Outras letras

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Os alfabetos glagótico, grego e cirílico

Ainda na Bósnia começamos a estudar o alfabeto cirílico. Apesar dos bósnios usarem o latino nas duas cidades que visitamos (só a parte sérvia do país usa o cirílico), estávamos nos preparando para a ida a Montenegro. Encontramos na internet as letras, ensaiamos escrever nossos nomes, descobrimos que o cirílico não é como o alfabeto latino, igual em todos os lugares dos mundo, mas têm algumas variações de país para país, e diferentes quantidades de letras.

Chegamos em Montenegro e descobrimos que lá, há já alguns anos, praticamente só se usa o alfabeto latino. Paramos nossos estudos. Depois fomos para a Albânia e só quando chegamos em Ohrid nos concentramos novamente no cirílico, desta vez no berço do alfabeto, por pura sorte.

No século XI, os  irmãos Cirilo e Metódio, de uma família rica de Tessaloniki, hoje Grécia, foram designados pelos bizantinos a irem para a região da atual Eslováquia, com a missão de criar um novo alfabeto que exprimisse sons presentes nas línguas eslavas e que não existiam no grego, a língua oficial daquele império. O alfabeto seria utilizado na tradução da Bíblia, o que facilitaria a conversão dos povos eslavos ao cristianismo e contribuiria na consolidação os domínios de Constantinopla através de uma religião comum.

O alfabeto criado pelos dois irmãos é uma mistura dos alfabetos grego, latino e hebraico, e ficou conhecido como glagótico – glagola significa verbo em russo moderno, e provavelmente tem origem no verbo ‘falar’, em eslavo antigo.

Mas o glagótico era muito rebuscado, com suas letras arredondadas que remetiam à forma das igrejas ortodoxas, difícil demais para ser usado correntemente, na tradução dos textos sagrados. Para então se chegar a um alfabeto utilizável, o imperador búlgaro Simeão pediu à Clemente de Ohrid, discípulo de Cirilo e Metódio, que desenvolvesse o alfabeto que conhecemos hoje como cirílico, uma mistura do galgótico com o grego.

Com o passar do tempo, o alfabeto cirílico passou a ser usado em grande parte dos países eslavos – Macedônia, Montenegro, Sérvia, Bulgária, parte sérvia da Bósnia (chamada de República Sérvia), Rússia, Bielorússia e Ucrânia –, além de países não eslavos que eram parte da URSS, como Mongólia, Cazaquistão, Uzbesquistão e Quirquiztão.

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Estátuas dos irmãos Cirilo e Metódio, em Sofia, Bulgária.

Transição

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A mudança geográfica e cultural do território albanês para o macedônico é bastante óbvia. Assim que cruzamos a fronteira, os áridos montes da Albânia deram lugar a outros bem irrigados, passando do bege para o verde, drasticamente. Notamos também, quando chegamos em Ohrid, que as ruas da cidade eram bem mais limpas do que as albanesas.

E é claro, a contrastante transição linguística. Voltamos a ouvir as velhas palavras eslavas, com as quais já havíamos nos habituado nos outros países da ex-Iugoslávia, e das quais sentimos saudades na nossa curta passagem pela Albânia. A língua macedônica, entre as línguas de origem eslava faladas nos Bálcãs, é a mais próxima da búlgara, herança da época em que a Bulgária constituía um império, com seus tentáculos pousados sobre a região. Alguns búlgaros chegam a insultar os vizinhos, dizendo que o macedônio não passa de um dialeto da língua deles.

E lá finalmente entramos em contato com o belo alfabeto cirílico, que estávamos curiosos para decifrar.

Cume

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Em um dos seis dias que passamos em Rostuše, fizemos uma caminhada de quase 12 horas subindo a montanha para colher blueberries, que seriam usados para fazer geléias e sucos para o inverno. Desde o começo do caminho víamos o topo aonde chegaríamos, a fronteira entre a Macedônia e a Albânia.

Lá em cima a vista é deslumbrante, a floresta do início vira um mato ralinho, e há uma fazenda de cabras e ovelhas durante o verão. Fomos em um dos últimos dias antes do frio, e quase todos os animais já estavam de volta em seus celeiros nas vilas no pé da montanha. O senhor que cuidava dos bichos ainda estava lá. Passando por cães pastores que nos tratavam como intrusos, nos sentamos em uma sala que era uma tenda de madeira um pouco separada da cocheira. Fomos recebidos com queijo de cabra fresco e rakjia, o destilado local, os dois feitos lá em cima. Enquanto comíamos e bebíamos – e ele não nos deixava parar – falava e ria alto, emendava histórias. Dizia da estupidez das pessoas em geral, da inteligência dos cachorros, da falta de proteção da fronteira, do descaso da polícia.

Saímos da visita levemente bêbados, rindo dos casos.

E então me contaram que uma vez, em uma brincadeira no meio de uma bebedeira, um companheiro de trabalho lhe deu um tiro na perna. Estavam no alto da montanha. O caminho até o hospital teria que ser feito a pé, eram cerca de 8 kms de ribanceira. Ele, para estancar o sangue, encheu o buraco da perna de feijões.

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A capital

No caminho do albergue para o centro de Skopia, passamos por uma grande estátua desmontada de um homem em cima de um cavalo. Parecia o esqueleto de um carro alegórico, o pedaço de uma história que ainda seria contada. E as pessoas de lá passavam ao lado dessa montagem sem reparar na movimentação tão surpreendente para mim –  até então as estátuas me pareciam nascer com a cidade, quando na verdade fazem parte de uma idéia que querem criar sobre ela. E a Macedônia está em plena construção de uma nova imagem, a mais próxima possível da Europa Ocidental e da antiguidade clássica.

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Skopia é inesperada, monumental e kitsh. A entrada da praça principal terá um arco do triunfo em estilo napoleônico, que já está quase pronto. Um pouco a frente fica a recém-inaugurada e gigantesca estátua de Alexandre, o Grande. Ele está em plena batalha, em cima de uma coluna rodeada por soldados, leões, fontes e luzes. Em sua órbita e virados para ele, outros personagens importantes para a formação da identidade do país ao longo dos séculos, que confirmam a existência e a história da Macedônia.

E estas não são as únicas estátuas do centro. Ao redor da praça, fora de seu núcleo de heróis, imagens mais cotidianas: mulheres com barrigas de fora e compras na mão; banda de música; mergulhadoras dentro do rio Vardar; estudantes; a Madre Teresa de Calcutá, que nasceu em Skopia. Eram inúmeras estátuas, como eu nunca tinha visto antes, como talvez nenhuma outra cidade tenha, todas feitas recentemente.

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E a história recontada do país continua sendo criada através dos prédios. Do lado da praça vê-se um edifício antiquadamente moderno, com vidros espelhados e formas arredondadas. Uma ponte do período otomano atravessa o rio que passa na beira da praça e na outra margem ficará, de um lado, o teatro austro-húngaro, que foi destruído e está sendo refeito uma vez e meia maior e virado para outra direção; do outro ficará o museu de arquelogia, um prédio em estilo clássico, com vidros azuis atrás de colunas gregas feitas de concreto. E de repente me ocorre: na construção dessa história macedônia, nada mais coerente do que um museu de arqueologia no lugar mais visitado da cidade.

A valorização do país está custando ao governo muitos milhões de euros e os próprios macedônios tem diferentes opiniões sobre a nova cara de Skopia: alguns acham incrível, acreditam que isso mostra que são capazes de coisas que as pessoas de fora não acreditam que sejam, outros acham que a cidade está se embarangando, e sentem vergonha.

A Macedônia, este país exprimido pelos vizinhos, tenta se fazer respeitado através de uma imagem grandiosa e ancestral, mas ele acaba parecido com o que eu imagino que seja Las Vegas.

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Alexandrismo de Massa

ImageEnquanto estávamos na Macedônia, 2 eventos que pararam o país nos disseram muito sobre o imaginário coletivo nacional.

O primeiro foi a inauguração da estátua de Alexandre, em Skopia. Segundo eles, a maior estátua da Europa. No centro da capital, emergindo do meio de uma fonte, com sua espada erguida, luzes violeta, e música clássica sincronizada com os jatos d’ água. Foi construída com dinheiro público, dentro do pacote de construção de monumentos históricos em busca de uma identidade presente.

A estátua-fonte foi considerada uma provocação pelos gregos, que reinvidicam a nacionalidade de Alexandre; dentro do país, foi considerada um monstro brega e desperdício de verba por alguns cidadãos macedônios eslavos, e por quase todos os macedônios albaneses, que não teriam relação alguma com o povo Helênico de Alexandre, e não se sentem representados por ele. Mas a grande maioria da população adorou. A inauguração levou uma multidão entusiasmada vestida de vermelho para o centro da cidade, com direito a discurso presidencial em rede nacional.

Uma semana depois a cena se repetiu com a mesma massa vermelha cantando hinos nacionalistas e/ou  anti-gregos pelas ruas, em cima de carros de bombeiro, quando a seleção de basquete (o primeiro esporte do país) ganhou a partida que lhe garantiu o quarto lugar no campeonato europeu. Buzinaço e êxtase pelas ruas, numa espécie de Alexandrismo coletivo.

Albanismo Macedônio

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Quando pegamos um taxi em Debar para chegarmos em Rostuše, o motorista nos falou que 40% da população macedônia era de origem albanesa, ele incluído. Estávamos bem perto da fronteira entre os dois países. Depois, li que segundo o censo de 2002, os albaneses são 25% da população e 10% da força de trabalho. Foram estas informações desencontradas que me fizeram sentir pela primeira vez que a relação entre eslavos e albaneses não era tão simples.

A Macedônia decidiu pela independência da Iugoslávia em 1991, através de plebiscito. Acabou se separando sem guerras. A Sérvia estava com seus esforços concentrados nos territórios croatas e bósnios.

Em uma região tão cheia de conflitos, o país acabou tendo também o seu, mas interno e só em 2001.

A insurreição começou quando o grupo conhecido como Exército de Libertação Nacional Albanês (NLA) atacou o as forças de segurança macedônias. Os macedônios de etinia albanesa diziam que a luta era para conquistar os mesmos direitos dos eslavos: serem reconhecidos como iguais na constituição; terem o albanês incluído como idioma oficial; pediam a construção de uma universidade pública albanesa. Os macedônios diziam que o que eles queriam, na verdade, era transferir parte do território do país para a Albânia, influenciados e financiados pelos albaneses kosovares, para assim formarem a Grande Albânia.

O conflito durou um ano, mas não se espalhou por todo o país – ficou concentrado no noroeste. Ao final dele, foi assinado o Acordo de Ohrid, que garantia aos albaneses a ampliação de seus diretos, como a oficialização da língua, a criação de cotas políticas e a possibilidade de se hastear bandeiras albanesas. Mas tudo isso apenas nas regiões onde os albaneses eram ao menos 20% dos habitantes.

E foi por essa concentração dos privilégios alcançados que ainda hoje os albaneses-macedônios continuam insatisfeitos. Eles querem seus direitos garantidos em todo o país e sabem que têm força política para isso. Sem eles – 25% da população -, não é possível para nenhum partido governar. Apesar de ser já de praxe que a coalizão vencedora, sempre eslava, convide o bloco albanês a participar do governo, hoje eles lutam para que algum cargo de importância – chefe de estado, primeiro-ministro ou presidente do parlamento – seja reservado a eles. Seria a garantia de que o que vem acontecendo não se perpetue: o partido de direita, que está no poder há seis anos e foi reeleito, estaria negligenciando as demandas albanesas.

No dia a dia, não é difícil perceber que os dois maiores grupos étnicos do país não se misturam. Não é comum casamentos entre eslavos e macedônios, eles não compartilham os mesmos bairros e se tratam com um certo desdém. Mas existem exceções. Agora é moda em Skopia, por exemplo, jovens macedônios eslavos frequentarem os cafés do outro lado da ponte, na parte otomana da cidade que é hoje o bairro albanês.

Rostuše

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Fomos a Rostuše (Rostuxe) visitar o Sherif, uma amigo macedônio que conhecemos em Trieste.

Rostuše é praticamente uma única rua subindo a montanha, com montes de lenha de um e do outro lado da estrada. Quase todas as casas têm dois andares e uma de suas paredes cobertas por pedaços de madeira empilhados com perfeição. E era esse o som da cidade: machados ritmados  acompanhados pela constante serra elétrica. O trabalho dos homens. Descobrimos que os adultos e os senhores passam o outono se preparando para o inverno. O trabalho das mulheres era mais escondido, também constante, e dava o cheiro da cidade: a cada dia elas se juntavam na casa de uma, assavam, tiravam os caroços e descascam pimentões vermelhos, que eram triturados e cozidos para virarem conserva para o inverno, a chamada Aivar. Só descobrimos de onde vinha aquele perfume quando fomos visitar os fundos da casa do Sherif.

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Os moradores de Rostuše chamam de centro o lugar onde a rua se alarga um pouco, virando um estacionamento e o pátio do colégio de crianças. Nesta espécie de praça fica a única mercearia, o único restaurante e o ponto de encontro em que homens e adolescentes fumam e tomam café. Ao lado desse bar sem bebidas – a vila é muçulmana e não há nenhum lugar em que se possa comprar álcool -, fica um clube de apostas em jogos de futebol.

Durante o dia, as pessoas passam diversas vezes nesta sala um pouco escura e sempre cheia, conferem seus jogos, fazem outros novos. É como um trabalho, com o preenchimento de um caderno que eles carregam de casa para a rua e trazem de volta, com novas apostas, em uma rotina que só tem folga na segunda-feira, quando o clube não abre. Em casa, o trabalho segue. Eles conferem repetidamente num canal especial da TV a cabo como se saíram times para os quais não torcem, mas cujo resultado esperam.

Foi a primeira vez que vi esses clubes de aposta, e achei que era uma forma de fugir de um tédio tão característico da vila – os jovens parecem não saber o que fazer para matar o tempo, imaginam a Europa ocidental como o lugar onde a vida acontece e parecem não conseguir se libertar da repetição. Só mais tarde descobri que esse é um vício balcânico, que depois percebi que estava presente em muitas cidades, muitos países.