Em O Imperador de Todos os Males, seu tratado médico, histórico, político e cultural sobre o câncer, Siddhartha Mukherjee diz que todo paciente começa como um narrador: “Nomear uma doença é descrever certa condição de sofrimento – é um ato literário antes de ser um ato médico.” Penso na frase ao ler Batida Só, novo romance de Giovana Madalosso (Todavia, 236 págs.), que abre com uma jornalista descobrindo ter uma arritmia grave.
A voz do livro é em primeira pessoa, e seu ato literário mistura forma e substância até na pontuação, com as vírgulas emulando as batidas cardíacas em momentos emocionais importantes (“eu não estava sentindo nada e,,,”, “mesmo assim, teve um momento em que,,,,,,,”). Não é um detalhe gratuito: tudo está ligado ao fator humano, num ritmo que acompanha a jornada da protagonista – visitas a médicos, uma temporada na casa da família no interior, o envolvimento com o drama de uma amiga de infância cujo filho está doente.
Giovana é uma escritora com domínio do ofício, algo mais raro do que parece num país cuja ficção recente tende ao declaratório, ao jorro confessional. Seus romances têm a qualidade de nunca afundar em simbologias ou recados muito acima ou abaixo do nível da trama. Em Batida Só, o equilíbrio sustenta o que se poderia definir como tema de fundo, uma crise de fé: se o discurso mais convicto sobre religião e suas derivações está sempre na boca de personagens vistos à distância, às vezes com ironia, o que afasta o risco da pompa ou da autoajuda, isso não tira a perplexidade da narradora – seu olhar para outro tipo de mistério, o da nossa biologia.
Trata-se de metafísica, no fim? Em O imperador…, Mukherjee fala da dubiedade simbólica de seu objeto de estudo: células que acabam causando o mal por operarem demais em suas funções benignas de reprodução. Um trecho de Batida Só diz algo parecido, envolvendo a criança doente e também a protagonista, o coração dela ali, batendo e deixando de bater por motivos que nos apavoram e fascinam: “Como pode um corpo apontar, ao mesmo tempo, para a vida e a morte?”
Início de texto sobre Batida Só e os romances Devastação (José Castello) e Pandora (Ana Paula Pacheco), publicado no Valor Econômico em 23/08/2025. Íntegra aqui.