Michel Laub

Fim de semana

Uma exposição no IMS – Gordon Parks.

Outra – Agnès Varda.

Um romance – Filha, Manoela Sawitski (Companhia das Letras, 128 págs.).

Um ensaio de 1984 – Nadine Gordimer sobre Coetzee (aqui).

Um disco – Vida Amorosa que Segue – Vol II, Lulina.

Vírgulas e sintomas

Em O Imperador de Todos os Males, seu tratado médico, histórico, político e cultural sobre o câncer, Siddhartha Mukherjee diz que todo paciente começa como um narrador: “Nomear uma doença é descrever certa condição de sofrimento – é um ato literário antes de ser um ato médico.” Penso na frase ao ler Batida Só, novo romance de Giovana Madalosso (Todavia, 236 págs.), que abre com uma jornalista descobrindo ter uma arritmia grave.

A voz do livro é em primeira pessoa, e seu ato literário mistura forma e substância até na pontuação, com as vírgulas emulando as batidas cardíacas em momentos emocionais importantes (“eu não estava sentindo nada e,,,”, “mesmo assim, teve um momento em que,,,,,,,”). Não é um detalhe gratuito: tudo está ligado ao fator humano, num ritmo que acompanha a jornada da protagonista – visitas a médicos, uma temporada na casa da família no interior, o envolvimento com o drama de uma amiga de infância cujo filho está doente.

Giovana é uma escritora com domínio do ofício, algo mais raro do que parece num país cuja ficção recente tende ao declaratório, ao jorro confessional. Seus romances têm a qualidade de nunca afundar em simbologias ou recados muito acima ou abaixo do nível da trama. Em Batida Só, o equilíbrio sustenta o que se poderia definir como tema de fundo, uma crise de fé: se o discurso mais convicto sobre religião e suas derivações está sempre na boca de personagens vistos à distância, às vezes com ironia, o que afasta o risco da pompa ou da autoajuda, isso não tira a perplexidade da narradora – seu olhar para outro tipo de mistério, o da nossa biologia.

Trata-se de metafísica, no fim? Em O imperador…, Mukherjee fala da dubiedade simbólica de seu objeto de estudo: células que acabam causando o mal por operarem demais em suas funções benignas de reprodução. Um trecho de Batida Só diz algo parecido, envolvendo a criança doente e também a protagonista, o coração dela ali, batendo e deixando de bater por motivos que nos apavoram e fascinam: “Como pode um corpo apontar, ao mesmo tempo, para a vida e a morte?”

Início de texto sobre Batida Só e os romances Devastação (José Castello) e Pandora (Ana Paula Pacheco), publicado no Valor Econômico em 23/08/2025. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um ensaio – Elogio da Mão, Henri Focillon (Ed 34, 92 págs.).

Um livro de poesia – Sílex, Eliane Marques (Círculo de Poemas, 72 págs.).

Uma conversa – Ben Moser sobre V.S. Naipaul no Empire.

Um filme melhor do que parece – O Amigo, Scott McGehee e David Siegel.

Um disco de 2007 – Para Marte, Mauricio Pereira.

Entre Tim Maia e Dorian Gray

Como cansa gostar de Morrissey. De tempos em tempos preciso lembrar que ele continua sendo um gênio – justamente até 1987, quando sua banda se separou. Também continua sendo um grande artista – entre o fim dos Smiths e o melhor álbum solo gravado por ele, Vauxhall and I (1994). De lá para cá, é penoso lidar com o fato de que os momentos de brilho foram se tornando esparsos, assim como a paciência com uma figura que se esforça para destruir a própria imagem.

Não vou cair no clichê da separação entre artista e obra, até porque no caso de Morrissey isso não existe. Para o bem e para o mal, o romantismo professado por ele demanda uma simbiose absolutista entre as duas esferas. É só ver como traços pessoais mostrados em Autobiography ganham extensão em dezenas de músicas escritas ao longo da carreira: os sofrimentos da juventude e o fascínio pela tristeza (Everyday is Like Sunday), o narcisismo individualista na vida adulta e a solidão autopiedosa (Please, Please, Please, Let Me Get What I Want), uma longa fase de celibato declarado e a idealização de amores impossíveis (There is a Light That Never Goes Out).

Somada a isso, a misantropia revelada no livro é um traço presente em letras que ironizam tanto figuras odiosas do poder quanto imigrantes (Bengali in Platforms), grávidas (Pregnant for the last time), crianças (November Spawned a Monster). Também uma pessoa no hospital (Girlfriend in a Coma), uma pessoa que se afogou (Lifeguard Sleeping, Girl Drowning), pessoas que gostam de sol (The Lazy Sunbathers), pessoas queridas que fazem sucesso (We Hate it when our Friends Become Successful). Quem se salva nesse imaginário venenoso são justamente os que estão longe das sujeiras do convívio humano: os anti-heróis mortos das lendas juvenis (o gângster de First of the Gang to Die), os personagens literários (o marinheiro melvilliano de Billy Budd), os animais simbólicos de uma inocência intocada (os bezerros e perus de Meat is Murder).

Claro que a crueldade de Morrissey está ligada a um certo tom de comédia, ou ao menos de paródia. O próprio cantor sempre deu indícios de autoironia em meio ao fel de sua produção – nas entrevistas, nos gestos no palco, nas roupas, no topete. Isso foi o que o salvou do traço repulsivo que suas convicções intransigentes tendem a alimentar: algo em sua obra conseguiu flutuar numa dubiedade vívida, em versos cantados com uma voz doce que às vezes sugere empatia, às vezes distância e desprezo. Numa fase mais recente, contudo, seja ela chamada de estilo tardio ou de qualquer outro nome, é como se a ambivalência de registros fosse extinta para dar lugar ao mofo literal – e não podemos recuar da consciência de que o belo também vem dessa fonte agora exposta.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 5/12/2025. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um disco – Pianolatria, Cristian Budu.

Um filme – Train Dreams, Clint Bentley.

Uma releitura – Train Dreams, Dennis Johnson (Granta, 116 págs.).

Um livro de poesia – Nuvens, Hilda Machado (Ed 34, 96 págs.).

Um romance de estreia – Instruções Para Desaparecer Devagar, Flávia Iriarte (Faria e Silva, 156 págs.).

Fim de semana

Um filme – O Agente Secreto, Kleber Mendonça.

Uma montagem – A Máquina, Coletivo Ocutá.

Um ensaio – Daniel Galera sobre Camus (aqui).

Um livro – Se o Mundo e o Amor fossem Jovens, Stephen Sexton (Círculo de Poemas, 128 págs.).

Uma exposição – Antonio Obá, Mendes Wood.

Morte e vida na escrita

            (…)

            O jogo se aprofunda quando episódios da vida da personagem/autora começam a se intercalar aos da vida do personagem/autor. Milena tem um primeiro namorado, uma primeira experiência de paixão por outra mulher, e na economia interna do relato a sensibilidade dela é um contraste à dureza dos juízos de Tremblay. Às vezes isso aparece de forma direta, nos diálogos entre os dois: “Você nunca usa as palavras ‘velho’ e ‘velhice’. Me pergunto se falar de impotência é uma forma de sublimar a velhice”. E às vezes é algo mais sutil, no vocabulário mais aberto (“desacertos do amor”), na exposição mais desarmada de sentimentos (“esses caras de merda, vaidosos de merda!”) e num tom de perdão carinhoso (“é só um personagem, Fá. Tá tudo bem”) que só aparecem em trechos e falas atribuídas a ela.

            À medida que Viver o medo se desenvolve, a ideia da proximidade da morte se torna mais aguda. Algo que já estava em textos anteriores de Bernardet, nos quais ele falava de sua convivência com o HIV, com um câncer e com uma cegueira progressiva, e aqui chega a seu ponto mais franco, graças também ao trabalho de Sabina – que foi aluna do autor na vida real, e com ele aprendeu algo do que sabe sobre honestidade (e invenção) na escrita. Nesse sentido, o resultado escapa do egocentrismo ao ser a união de diferentes abordagens: a europeia e a brasileira, a masculina e a feminina, a de alguém próximo aos 90 anos e a de alguém na faixa dos 50.

            Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 14/11/2025, sobre o romance Viver o Medo, escrito por Jean-Claude Bernardet e Sabina Anzuategui. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um disco – Lux, Rosalia.

Outro – EUSEXA, FKA twigs.

Um filme – Nosferatu, Cristiano Burlan.

Uma entrevista – Reginaldo Prandi sobre orixás no Ilustríssima Conversa (aqui).

Um ensaio – Matheus Borges sobre uma crise psíquica (aqui).

Encenações do inferno

“Somos poucos e estamos mortos”, diz um Benito Mussolini ficcional logo no início de M., o filho do século, primeiro volume da trilogia que Antonio Scurati escreveu sobre o líder do fascismo italiano (Intrínseca, 810 págs., tradução de Marcello Lino). Alguns parágrafos adiante, o mesmo personagem como que se desmente: “Nesta sala semivazia (…) procuro o pulso da multidão e tenho certeza de que meu público está presente (…). Eu sou o homem do ‘depois’”.

M. acaba de ser adaptado para uma série homônima no Mubi. O acerto do diretor Joe Wright foi traduzir visual e narrativamente esse discurso contraditório em mais de uma dimensão. Porque aí está uma característica do movimento que dominou a Itália no início dos 1920, em meio aos destroços materiais e morais da Primeira Guerra: fazer a história andar para a frente e para trás ao mesmo tempo, numa espécie de presente contínuo, usando uma linguagem então inédita – a de uma nova era industrial e midiática – para prometer a restauração de um passado mítico. Como resultado, tem-se um furacão totalitário que precisa seguir girando sob pena de expor o seu centro vazio: “O fascismo é tudo”, diz Mussolini na série. “O fascismo é o contrário de tudo”.

Início de texto publicado no Valor Econômico, 31/10/25, sobre séries que têm como tema Mussolini (Joe Wright, Mubi), Menem (Ariel Winograd, Amazon Prime) e Collor (Charly Braun, Globoplay). Íntegra aqui.

Fim de semana

Uma série – Mr. Scorsese, Rebecca Miller

Um filme competente – Casa de Dinamite, Kathrin Bygelow.

Um mini doc de 1983 – Punks, Sarah Yakhni e Alberto Gieco (aqui).

Um disco – VII, The Budos Band.

Um livro – Espécies de Espaços, Georges Perec (Ed 34, 216 págs.).

Fim de semana

Um romance – Autobiografia do Vermelho, Anne Carson (Ed 34, 192 págs.).

Um texto – Karl Ove Knausgaard sobre Os Irmãos Karamázov (aqui).

Um filme – Bird, Andrea Arnold.

Um filme melhor do que parece – A Ordem, Justin Kurzel.

Uma série – M., O Filho do Século, Joe Wright.

Fim de semana

Um romance – Forest Dark, Nicole Krauss (Harper Perenial, 304 págs.).

Um filme – #Eagoraoque, Rubens Rewald e Jean-Claude Bernardet.

Uma exposição no Masp – Clarissa Tossin.

Outra – Abel Rodrígues.

Um disco – Getting Killed, Geese.

Fim de semana

Um documentário – Devo, Chris Smith.

Uma animação – Fixed, Genndy Tartakovsky.

Um filme com momentos – Uma Batalha depois da Outra, Paul Thomas Anderson.

Uma série que eu não tinha visto – Traumazone, Adam Curtis.

Uma edição – Collected Poems, Anne Sexton (Ecco, 272 págs.).

Fim de semana

Um texto – Olavo Amaral sobre IA e memória (aqui).

Outro – Alexander Sorondo sobre William T. Vollmann (aqui).

Uma série com momentos – Too Much, Lena Dunham.

Um doc de 2002 – The Importance of Being Morrissey, Tina Flintoff e Ricky Kelehar.

Um romance – Viver o Medo, Sabina Anzuategui e Jean-Claude Bernardet (Companhia das Letras, 128 págs.).

Margens liberadas

Já devo ter citado neste espaço – porque vivo citando por aí – um trecho de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, romance em que Marco Polo descreve para o imperador mongol Kublai Khan os lugares exóticos por onde passa em suas viagens (Companhia das Letras, 150 págs., tradução de Diogo Mainardi).

É um diálogo bem no meio do livro, e nele Khan pergunta por que seu interlocutor nunca fala de Veneza, onde nasceu. Marco Polo responde: “E de que outra cidade imagina que eu estava falando? (…) Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita”. Ante a insistência do imperador, dizendo que os relatos então deveriam descrever Veneza “ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela”, o viajante explica: “As margens da memória, uma vez fixadas, cancelam-se (…). Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza se falar sobre dela”.

Duas ideias emergem da passagem, se quisermos considerá-la algum tipo de metáfora sobre a literatura. A primeira é que Veneza é cada um de nós escritores durante o trabalho: nunca deixamos de falar de nós mesmos, e nossos parâmetros de julgamento sobre o mundo estão implícitos em cada palavra que escolhemos botar ou tirar na página – tendo o livro um assunto próximo ou tratando de mundos teoricamente distantes.

A segunda, que talvez contradiga a anterior, ou talvez a complemente, é que tudo muda quando vira texto – inclusive a memória, que é uma soma de nossas experiências, opiniões e sensibilidade. A linguagem reduz a dimensão da vida – a palavra “angústia” é menor que a angústia –, e para ser fiel à abstração de um sentimento precisa reinventá-lo num arranjo poético ou narrativo autônomo.

Início de texto publicado no Valor Econômico, 19/9/2025, sobre forma literária e crítica de livros. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um disco – Super Champion, Otoboke Beaver.

Uma exposição no Rio – Maria Bonomi, Paço das Artes.

Outra – Aline Motta, Sesc Copacabana.

Um filme melhor do que parece – O Esquema Fenício, Wes Anderson.

Um livro – O Bom Mal, Samanta Schweblin (Fósforo, 160 págs.).

Fim de semana

Um ensaio – O ouriço e a raposa, Isaiah Berlin (Civilização Brasileira, 160 págs.).

Outro – Pensar com as mãos, Marília Garcia (Martins Fontes, 256 págs.).

Um disco de 1960 – Out There, Eric Dolphy.

Uma exposição – Mauro Restiffe e Maria Manoella, Fortes D’Aloia & Gabriel.

Uma ópera que saiu de cartaz – Falstaff, Ira Levin e Caetano Vilela.

Esboços do eu

A quarta capa da edição brasileira de Esboço, de Rachel Cusk, publicada pela Todavia (190 págs., tradução de Fernanda Abreu), descreve este romance de 2014 como o primeiro da “trilogia que transformou a literatura contemporânea”. Nada contra o marketing da frase: há um fundo de verdade nela, inclusive, se o conceito de transformação for quantitativo, referente ao sucesso comercial e impacto midiático que tiveram o livro e seus dois sucessores (Trânsito, de 2016, e Mérito, de 2018).

A questão é se a novidade também se dá na dimensão artística, e aí só o fato de fazermos essa pergunta sem cinismo já diz algo sobre a singularidade de Esboço. Narrada por uma mulher recém-saída de um divórcio durante uma viagem à Grécia, onde foi convidada a ministrar uma oficina literária, em boa parte a história do livro não parece ser a dessa narradora, e sim das pessoas com quem ela vai conversando pelo caminho – um ex-milionário, um amigo antigo, uma poeta perseguida por um aluno, uma dramaturga com uma teoria exótica sobre bloqueio criativo.

Início de texto publicado no Valor Econômico, 5/7/2025. Íntegra aqui.

Egopress

Nos dias 29 e 30 de agosto, na Escrevedeira/SP, dou o curso/oficina Faces do Narrador de Ficção, com duração de 6 horas, sobre a história e a técnica dos pontos de vista na literatura. Inscrições e mais detalhes aqui. Texto de divulgação:

Sobre o curso

A voz narrativa é um dos recursos fundamentais de qualquer obra literária, que repercute de forma decisiva no texto, orientando aspectos específicos de suas configurações de tempo, espaço, personagens e outros elementos da ficção, no que pode ser chamado de verdade do narrador. Afinal, quem conta a história, de que lugar, com que intenção e sob que perspectiva?

Em dois encontros presenciais na casa da Escrevedeira, misto de curso e oficina, Michel Laub, um dos nomes de destaque da ficção brasileira contemporânea, apresenta e analisa diferentes formas de narrar um texto de ficção, a partir de vários exemplos de autores consagrados e da discussão de textos dos participantes.  

Encontro 1 – A verdade do narrador de ficção

Aula teórica e ilustrativa, com análise de trechos selecionados de romances e contos, (materiais que estarão disponíveis no site, ‘na área do aluno’), que servirão de base para uma conversa sobre as características de narradores em primeira, segunda e terceira pessoa, diferentes entre si pelo grau de instrução, de consciência, de proximidade ou distância relativa do que é narrado, além de suas relações com o tempo e o espaço.

Encontro 2 – O narrador na prática

Na segunda aula, os conceitos debatidos serão aplicados na prática a textos curtos dos próprios participantes (que devem ser enviados ao email [email protected], até no máximo 22 de agosto). Os textos enviados no prazo serão distribuídos entre os presentes para serem discutidos, de maneira que todos possam ter a experiência de serem tanto autores como leitores críticos.  

Fim de semana

Um livro – Adeus a Berlim, Christopher Isherwood (Companhia das Letras, 248 págs.).

Uma montagem – Deserto, Luiz Fernando Reis.

Um filme duro – Abril, Dea Kulumbegashvili.

Uma exposição na Pina Luz – Flávio Império.

Outra – Neide Sá.

O cavalo de cada um

Morei em Londres em 1994, entre os 20 e 21 anos, e as memórias que tenho da cidade hoje se confundem com fotografias, visitas posteriores, reavaliações de coisas que acho terem ocorrido de determinada maneira. A objetividade da impressão pessoal é das primeiras ilusões que perdemos na vida adulta, e há até um conforto – uma beleza – em saber que o passado pode ser mais vibrante do que foi.

É difícil para mim, portanto, definir o grau de fidelidade histórica trazido pelas incríveis imagens da Inglaterra dos 1970-1990 que aparecem na série documental Shifty, de Adam Curtis. Em vários momentos, é como se o diretor mostrasse o país que conheci em 1994 – um lugar em geral cinzento, meio sujo e feio, povoado por tipos que lembram os contadores monty pythonianos dos escritórios do Soho onde eu vendia sanduíches. Só que essas imagens são de quinze anos antes, paralelas a cenas em minas e fábricas deprimentes que poderiam estar em documentários sobre a União Soviética – inclusive num que o próprio Curtis assina, Traumazone (2022), cujo tema é a vida durante e depois da queda da Cortina de Ferro.

O que há de objetivo em Shifty: o fato de seu material ser um registro precioso em sua abrangência. Tudo que está nas cinco horas e meia da série em algum momento apareceu na BBC, seja no noticiário político, seja no campo do infindável gosto inglês pelo ridículo de costumes. Por outro lado, claro que é tudo um recorte, manipulado pela escolha de assuntos e personagens, por ritmo e trilha sonora. Um dos eixos do documentário ecoa a tese de HyperNormalisation (2016), também de Curtis, que comentei neste espaço um tempo atrás: a ideia de que, um pouco por ignorância, bastante por malícia, a política abriu mão do poder real e entregou-o ao sistema financeiro, restando à sociedade o consolo de uma falsa liberdade nas artes, na cultura, no consumo, até no trabalho.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 25/7/2025. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um artigo – Mohammed R. Mhawish sobre trauma em Gaza (aqui).

Outro – David W. Brown sobre o resgate de um cachorro (aqui).

Um podcast – A.O. Scott sobre O Grande Gatsby, no The Daily.

Um filme – Materialists, Celine Song.

Um curta de 1988 – Lick The Star, Sofia Coppola.

Fim de semana

Uma série – O Show de Menem.

Um filme – The Shrouds, David Cronenberg.

Um disco – Perverts, Ethel Cain.

Um romance – Pandora, Ana Paula Pacheco (Fósforo, 132 págs.).

Um ensaio – Escrever é Humano, Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras, 198 págs.).

Lições de um assassinato

“Sinto-me bastante ufano com os meus dotes de escritor”, diz o personagem de um romance de Agatha Christie que tenho na biblioteca de casa. Li esse livro aos 12 ou 13 anos, na mesma terceira edição lançada em 1951 pela Globo (a primeira é de 1931). Parte das páginas se soltou, a ortografia é anterior à reforma de 1973 (“êle”, “sôbre”), há ênclises, mesóclises e outras expressões polidas de uma sensibilidade datada, presa a costumes de um país (a Inglaterra) e de um tempo (o entre guerras) tão amarelados quanto o papel e a tradução de Leonel Vallandro.

E, no entanto, algo de atual sai da forma dessa história cujo nome seria um spoiler dizer. Ela é narrada pelo próprio assassino, que consegue manter o suspense numa voz que alterna objetividade e manipulação em meio a encaixes exóticos envolvendo um punhal, uma poltrona fora de lugar, um estenógrafo e um telefonema feito da estação de trem. É uma técnica admirável à sua maneira, que tive a sorte de conhecer cedo nas convenções desse e de outros romances whodunit.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 27/6/2025. Íntegra aqui.

Lidando com as feridas

Não sei qual é o futuro da leitura na era da IA. Talvez um bom palpite a respeito comece, como faz Joshua Rothman num artigo publicado em junho na The New Yorker, lembrando palpites sobre outras tecnologias que foram dominantes na área até pouco tempo atrás. Um deles é o do fim do “parêntese de Gutenberg”. Segundo essa hipótese, o ecossistema de publicação inaugurado com a invenção da prensa de tipos móveis (por volta de 1450) teria sido dominante só até o advento da Internet – essa um meio menos centralizado, no qual a leitura de livros é em boa parte traduzida em conversas (em caixas de comentários, podcasts, falas no You Tube e assim por diante).

Ocorre que a Internet das redes sociais – o “parêntese de Zuckerberg” – também parece estar com os dias contados. Ou seja, o novo mundo previsto há poucos anos será substituído num prazo não muito maior que uma geração. Em seu lugar surge um ecossistema em que pessoas online às vezes não são nem pessoas, mas simulações baseadas em programas treinados a partir de uma quantidade inimaginável de texto. “É como se os livros tivessem criado vida”, escreve Rothman, “e se vingassem gerando algo novo – um casamento entre texto, pensamento e conversa que vai reavaliar a utilidade da palavra impressa.”

Quanto tempo isso durará? E o quanto devemos levar a sério o que nos é vendido como vantagem na mudança? Em janeiro, segundo o texto da The New Yorker, o economista Tyler Cowen anunciou que estava começando a “escrever para IAs”, pressupondo que esses sistemas hoje leem e armazenam todas as frases da Internet. “Com muito poucas exceções”, diz ele, “até pensadores e escritores famosos em seus tempos de vida em algum momento são esquecidos”.

A boa notícia, ainda segundo Cowen, é que os programas de IA não esquecem: um dia eles serão capazes de formular um modelo preciso de como cada um de nós pensa, para consumo de descendentes, leitores distraídos, eventuais fãs que para isso não terão de folhear “um monte de velhos livros empoeirados”. Posts sobre coisas que hoje são irrelevantes, como fatos do dia-a-dia de um sujeito não tão conhecido assim, serão material para – digamos – “uma biografia muito boa de Tyler Cowen”. Pausa para chorar ou para rir: a única novidade nessa conjectura é alguém ver vantagem no que três décadas de Internet nos mostraram ser um problema – a incapacidade do mundo virtual de peneirar os detritos do passado, e por consequência encontrar o que vale a pena na formação de sentidos, matéria-prima de uma cultura que consiga refletir sobre as lições da história para melhorar o futuro.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 11/7/2025. Íntegra aqui.

Fim de semana

Um texto – Leda Cartum sobre Simone Weil (aqui).

Um texto aflitivo – Rachel Aviv sobre Agnard Callard (aqui).

Um filme sobre peles – Parthenope, Paolo Sorrentino.

Um show – Arto Lindsay, Bona.

Um disco – Invisible Diary, Kaito Takamura.

Fim de semana

Uma série documental – Shifty, Adam Curtis.

Um doc – Amor e Morte em Julio Reny, Fabrício Cantanhede.

Um filme de ficção – Os Cinco Diabos, Lea Mysius.

Uma exposição – Luiz Braga, IMS.

Um show – Filipe Catto, Sesc Pompeia.

Fim de semana

Um texto – Joshua Rothman, a IA e a leitura (aqui).

Outro – Adriano Scandolara e a prosa romanesca (aqui).

Uma edição – Nossa Vingança é o Amor, Cristina Peri Rossi (Ed 34, 398 págs.).

Um disco – Virgin, Lorde.

Uma exposição – Hiroshi Sugito, Fortes D’Aloia e Gabriel.

Eu e o outro

Quando dou oficinas literárias, gosto de propor um exercício em cima do conto Os Músicos, de Rubem Fonseca, que tem uma página e foi publicado em Lucia McCartney (1967). A ideia é cortar metade do texto, sem acrescentar nenhuma palavra ao que sobrevive ao corte, e discutir o que a nova versão perde comparada à original. Há várias respostas possíveis, algumas centradas na ambientação, outras no caráter dos personagens, mas é apenas em um caso – se o corte atinge o único verbo em primeira pessoa do texto – que o sentido geral muda radicalmente.

Rubem Fonseca estaria fazendo 100 anos em 2025. Entre as explicações também possíveis sobre por que ele foi um autor importante, gosto da que se concentra justamente na perspectiva. Usar a primeira pessoa às vezes não faz diferença, e às vezes é a escolha que mudará o rumo literário, ético e político de uma obra – vide a de Machado de Assis, cujo auge é o manejo desse tipo de narrador em romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Início de texto publicado no Valor Econômico, 13/6/2025. Íntegra aqui.

Sei o que é quando vejo?

“Sei o que é quando vejo”, disse celebremente o juiz Potter Stewart sobre pornografia. Numa passagem de O ódio pela poesia, que ganha agora edição brasileira pela Fósforo (80 págs, tradução de Leonardo Fróes), o escritor e crítico norte-americano Ben Lerner como que explora o inverso da frase, descendo a detalhes – a “elisão ostensivamente tática” de uma sílaba, por exemplo – que explicam por que um poema do escocês William McGonagall seria tão ruim como dizem. Precisaria tanto, não basta apenas ler? Bem, estamos no século XXI, e a pergunta é mais capciosa do que parece.

Para quem é do ramo, imagino que McGonagall seja um alvo fácil, uma espécie de Ed Wood da poesia. Sem estar tão familiarizado com os termos usados por Lerner, e sem ter no inglês o ouvido do português, me resta acreditar na autoridade de um crítico cujo texto é uma demonstração triunfal de conhecimento sobre seu objeto. Ou melhor, me resta fazer a ligação entre os ataques ao poema de McGonagall e o que nele, segundo o meu repertório, do qual fazem parte as sugestões de ensaios como O Ódio…, soa desajeitado no original e numa tradução boa/fiel a esse ruído.

Lerner é um crítico minucioso, não pedante. Seu propósito não é tripudiar de ninguém, e sim mostrar como pode ser difícil entender que diabos é poesia. O autor esboça várias definições a respeito, ilustrando-as com exemplos que vão do classicismo às vanguardas, do universalismo contraditório de Walt Whitman aos versos documentais de Claudia Rankine, dos jogos de palavras na infância (que constroem e destroem a forma) a um tipo de beleza que remete à lembrança de um adolescente num hipermercado de Topeka, Kansas (onde “cada floco ou tiquinho de milho inflado pertencente a mim pertence de igual modo a você”).

Tudo isso é exato e bonito – e pode se aplicar somente a casos específicos. Em termos mais amplos, O ódio… lida é com a clássica divisão godardiana entre regra cultural e exceção artística. Ela fez mais sentido no Século XX, porque um campo de análise menor – em número de obras, em diversidade de vozes se manifestando a respeito – estimulava critérios menos instáveis, digamos. É diferente em 2025, quando quase ninguém tem a pretensão de determinar um eixo central nos rumos da produção artística, nem juízos universais de gosto.

Trecho de texto publicado no Valor Econômico, 16/5/2025. Íntegra aqui.