
No cenário multifacetado do futebol global, a Copa do Mundo de Clubes da FIFA emerge como um palco de disputas não apenas esportivas, mas também culturais e geopolíticas, oferecendo uma lente singular através da qual podemos examinar as intrincadas relações entre o direito internacional, os direitos humanos e as persistências de preconceitos históricos. Como pesquisadora, dedico-me a desvendar as camadas que compõem esse espetáculo, percebendo que a bola que rola nos gramados internacionais carrega consigo muito mais do que a simples busca por um gol; ela reflete as tensões e as aspirações de um mundo interconectado, onde narrativas dominantes são constantemente desafiadas pela realidade da excelência que transcende fronteiras preestabelecidas.
É nesse contexto que a performance dos clubes brasileiros na Copa do Mundo de Clubes se torna particularmente emblemática, expondo uma surpresa recorrente por parte do observador europeu que, inconscientemente ou não, ainda se apega a paradigmas eurocêntricos e a visões xenófobas sobre o futebol praticado em outras latitudes, negligenciando a vitrine que o esporte, em sua totalidade, proporciona para a discussão e a implementação do direito internacional e dos direitos humanos.
I. A Copa do Mundo de Clubes da FIFA: Um Espelho das Dinâmicas Globais do Futebol
A Copa do Mundo de Clubes da FIFA, em sua gênese e evolução, representa muito mais do que uma mera disputa por um troféu; ela é o ápice de uma série de confrontos continentais que culminam na tentativa de coroar o melhor time do planeta.
Inicialmente concebida como a Copa Intercontinental, disputada entre os campeões da Europa e da América do Sul, a competição expandiu-se sob a égide da FIFA para incluir representantes de todas as confederações, refletindo o esforço de universalização do futebol e de reconhecimento da pluralidade de centros de excelência. Essa expansão, embora fundamental para a inclusão e a representatividade, não logrou, contudo, erradicar uma percepção intrínseca de hierarquia, onde o futebol europeu frequentemente se autoproclama o ápice da modalidade, relegando as demais escolas a um plano secundário.
É precisamente neste palco de pretensa universalidade que a qualidade do futebol brasileiro resplandece de maneira a desafiar expectativas e a reiterar sua força inegável. A cada embate entre clubes sul-americanos, especialmente os brasileiros, e os colossos europeus, observa-se uma espécie de surpresa por parte da mídia e dos torcedores do Velho Continente quando a capacidade técnica, tática e a resiliência demonstrada pelos times do Brasil se equiparam ou, por vezes, superam o nível dos seus adversários. Essa surpresa não se manifesta pela ausência de qualidade no futebol sul-americano – afinal, a história está repleta de exemplos de glórias e talentos exportados –, mas sim pela persistência de um viés que dificulta o reconhecimento pleno da excelência alheia.
A capacidade brasileira de, mesmo diante de orçamentos e estruturas desiguais, competir em pé de igualdade e, em muitos momentos, prevalecer, deveria ser um fato reconhecido, e não uma constante fonte de assombro, o que nos remete a uma análise mais profunda das raízes dessa percepção distorcida.
II. Eurocentrismo no Esporte e a Desvalorização do “Outro” Futebol
A hegemonia narrativa europeia no futebol global é um fenômeno complexo e multifacetado, enraizado em aspectos históricos, econômicos e culturais que moldam a percepção de valor e de excelência.
A Europa, com suas ligas de alto investimento, infra estruturas modernas e vasto alcance midiático, consolidou-se como o centro gravitacional do futebol mundial, atraindo os maiores talentos de todos os continentes e ditando as tendências táticas e de mercado. Esta centralidade, no entanto, frequentemente transborda para uma espécie de eurocentrismo esportivo, onde o modelo de jogo, a formação de atletas e a própria organização dos clubes europeus são tomados como o padrão ouro, qualquer desvio sendo percebido como uma deficiência ou um atraso. A mídia europeia, ao cobrir o futebol global, muitas vezes reforça essa visão, valorizando desproporcionalmente seus próprios campeonatos e atletas, enquanto as competições e os jogadores de outras regiões são vistos principalmente como “fornecedores” de matéria-prima para o mercado europeu, ou como meros coadjuvantes em uma narrativa que lhes é marginal.
As manifestações do eurocentrismo na percepção de valor são evidentes na forma como atletas de outras latitudes são avaliados antes de migrarem para a Europa, e na subestimação de estilos de jogo que não se encaixam no molde tático prevalecente em seus grandes centros. Há um paradoxo inerente a essa visão: enquanto os clubes europeus avidamente buscam e pagam fortunas por jogadores sul-americanos, africanos e asiáticos, há uma simultânea desvalorização das ligas de onde esses talentos emergem. A capacidade técnica apurada, a inventividade e a alegria no jogo, características intrínsecas ao futebol brasileiro, por exemplo, são frequentemente rotuladas como “improvisação” ou “falta de disciplina tática”, em vez de serem reconhecidas como componentes legítimos e eficazes de uma filosofia de jogo distinta e igualmente válida. O futebol brasileiro, apesar de sua história gloriosa de múltiplos títulos mundiais e da exportação de uma plêiade de gênios da bola, ainda enfrenta a persistência de uma visão de que é “menos profissional” ou “menos taticamente sofisticado”, uma narrativa que convenientemente ignora a complexidade e a adaptabilidade que permitiram ao Brasil dominar o cenário internacional em diversas épocas.
Essa “surpresa” constante com a qualidade brasileira é, portanto, menos uma constatação e mais uma revelação da cegueira imposta por um prisma eurocêntrico.
III. Xenofobia no Ambiente Esportivo e suas Ramificações
A xenofobia no ambiente esportivo pode ser compreendida como uma extensão nefasta do eurocentrismo, onde a desvalorização cultural e esportiva do “outro” se transmuta em preconceito e aversão ao estrangeiro. No futebol, isso se manifesta de maneiras variadas, desde comentários condescendentes e estereotipados por parte de jornalistas e especialistas, que resumem complexas culturas futebolísticas a clichês, até atos mais abertos de hostilidade e discriminação por parte de torcedores.
A ideia de que certos estilos de jogo ou características físicas são inerentemente “inferiores” ou “desordenados” em comparação com os padrões europeus fomenta um terreno fértil para a xenofobia, impactando diretamente a percepção pública e as oportunidades de carreira de atletas e profissionais não-europeus. O jogador que migra para a Europa, mesmo que seja um talento excepcional, muitas vezes precisa provar-se duplamente, enfrentando não apenas a concorrência em campo, mas também os estigmas e preconceitos relacionados à sua origem.
Os impactos nos atletas e clubes não-europeus são profundos e multifacetados. Atletas sul-americanos, africanos e asiáticos, por exemplo, frequentemente enfrentam dificuldades adicionais de adaptação, não apenas devido à barreira linguística e cultural, mas também em razão de estereótipos raciais e culturais que permeiam parte do ambiente esportivo europeu.
Essa pressão extra pode minar a confiança e o desempenho, e o sucesso desses jogadores, quando alcançado, torna-se um ato de resistência e afirmação contra um sistema que, por vezes, busca silenciar ou marginalizar suas contribuições. A vitória de um clube brasileiro em uma Copa do Mundo de Clubes, ou mesmo a demonstração de um futebol de alta qualidade que rivaliza com os gigantes europeus, transcende o mero resultado esportivo; ela se torna uma declaração potente contra essa xenofobia velada, um testemunho da capacidade de superação e da riqueza da diversidade futebolística. A resposta em campo,
com técnica, raça e inteligência tática, é uma forma contundente de quebrar as barreiras do preconceito e de afirmar que a excelência não tem CEP nem continente fixo.
IV. O Futebol Como Vitrine para o Direito Internacional: A Lex Sportiva
Para além das paixões e das disputas em campo, o futebol global, personificado pela estrutura da FIFA e suas competições, funciona como uma vitrine extraordinária para a aplicação e a evolução do direito internacional. A FIFA, como uma organização internacional sui generis, possui um poder normativo vasto e abrangente, regulamentando aspectos que vão desde a transferência de jogadores e a resolução de disputas contratuais até o controle de doping e a integridade das competições. Essa rede de regulamentos, estatutos e códigos disciplinares constitui o que é amplamente conhecido como lex sportiva, um sistema jurídico autônomo que, embora com características próprias, dialoga constantemente com o direito internacional público e privado. A existência da Corte Arbitral do Esporte (CAS), com sede em Lausanne, Suíça, é a demonstração mais clara da complexidade e da institucionalização desse sistema jurídico desportivo, que processa milhares de litígios anualmente, garantindo a uniformidade e a segurança jurídica nas relações globais do esporte.
Os mecanismos de resolução de conflitos dentro do futebol, como o CAS e os diversos comitês disciplinares da FIFA, atuam como tribunais e órgãos quase-judiciais internacionais, aplicando princípios de devido processo legal e garantindo que clubes, jogadores e federações possam ter seus direitos protegidos em um ambiente transnacional.
Disputas sobre contratos de trabalho, validade de transferências internacionais, sanções por violações de regras antidoping e até mesmo questões de governança interna das federações nacionais são frequentemente levadas a esses fóruns, demonstrando a necessidade imperativa de uma harmonização e cooperação jurídica internacional para manter a integridade e a equidade do esporte. A organização de grandes eventos, como a Copa do Mundo de Clubes, representa um desafio jurídico imenso, envolvendo contratos de bilhões de dólares, questões de infraestrutura, segurança, direitos de transmissão e direitos de imagem, exigindo uma intrincada colaboração entre estados, entidades privadas e a própria FIFA, sublinhando a dimensão verdadeiramente global e legalmente complexa do fenômeno futebolístico.
V. Direitos Humanos no Campo e Fora Dele: A Dimensão Ética do Esporte
A intersecção entre o futebol e os direitos humanos é uma área de crescente importância e visibilidade, revelando que o esporte mais popular do mundo não pode ser
dissociado das grandes questões éticas e sociais da contemporaneidade.
A Copa do Mundo de Clubes, ao reunir atletas e equipes de diversas nações, inevitavelmente expõe a necessidade de proteger os direitos fundamentais de todos os envolvidos, tanto dentro quanto fora dos gramados. Em primeiro lugar, os direitos dos atletas e profissionais do esporte são uma preocupação central, abrangendo desde a garantia de contratos justos, salários adequados e condições de trabalho seguras, até a liberdade sindical e a proteção contra a exploração, em particular de menores. A FIFA e outras entidades desportivas têm sido cada vez mais instadas a implementar diretrizes rigorosas para combater o tráfico de jovens talentos, assegurando que o desenvolvimento esportivo esteja sempre atrelado à educação e ao bem-estar integral das crianças e adolescentes.
Adicionalmente, o combate à discriminação, ao racismo, à xenofobia e a todas as formas de preconceito no futebol é um imperativo moral e legal. Embora o eurocentrismo e a xenofobia possam manifestar-se de forma sutil, as expressões de racismo nas arquibancadas e nas redes sociais são flagrantes violações dos direitos humanos que exigem respostas firmes. A FIFA e as confederações têm implementado campanhas e sanções para coibir tais comportamentos, mas a persistência do problema demonstra a necessidade de uma ação contínua, baseada na educação, na conscientização e na aplicação rigorosa de punições. A dimensão dos direitos humanos se estende, ainda, à organização de grandes eventos, como a própria Copa do Mundo de Clubes, onde a preocupação com as condições de trabalho na construção de estádios e infraestrutura, os direitos dos fãs e das comunidades locais, e a responsabilidade social corporativa dos patrocinadores tornam-se elementos cruciais para a legitimidade e o legado desses torneios.
O futebol brasileiro, historicamente, tem um papel de vanguarda nesse sentido, com clubes e jogadores que frequentemente se posicionam em causas sociais, utilizando sua plataforma para promover a igualdade, a inclusão e a justiça, demonstrando que o esporte pode ser uma poderosa ferramenta para a conscientização e a mudança social.
VI. Conclusão: Futebol Como Catalisador de Compreensão e Justiça
Em suma, a Copa do Mundo de Clubes da FIFA transcende a mera competição esportiva, apresentando-se como um microcosmo das dinâmicas sociais, culturais e jurídicas globais. A “surpresa” europeia com a qualidade do futebol brasileiro, reiterada a cada embate de alto nível, é um sintoma persistente de um eurocentrismo arraigado e de manifestações de xenofobia que ainda permeiam o cenário esportivo internacional.
Contudo, essa mesma arena global serve como uma vitrine crucial para o Direito Internacional, com a lex sportiva da FIFA regulando complexas relações transfronteiriças e a Corte Arbitral do Esporte atuando como um baluarte para a resolução de litígios.
Mais fundamentalmente, o esporte é um palco para a defesa e a promoção dos Direitos Humanos, desde a proteção dos direitos laborais dos atletas até o combate intransigente ao racismo e à discriminação em todas as suas formas.
Como pesquisadora, reafirmo que o futebol, com sua capacidade singular de unir e mobilizar bilhões de pessoas, possui um potencial transformador imenso. A cada gol, a cada vitória de um clube não-europeu sobre um gigante do Velho Continente, não se celebra apenas um triunfo esportivo, mas um avanço simbólico contra preconceitos, uma reafirmação da diversidade e da excelência que reside em todas as partes do mundo. É imperativo que as estruturas que governam o futebol global continuem a evoluir, integrando de forma mais robusta os princípios do Direito Internacional e dos Direitos Humanos em todas as suas operações. Somente assim o futebol poderá cumprir plenamente sua promessa de ser não apenas um espetáculo, mas um verdadeiro catalisador de compreensão mútua, respeito e justiça em escala global.





