sábado, 27 de dezembro de 2025

Grito matinal

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Quando fui ao frigorifico buscar a manteiga para a torrada matinal, ouvi uma voz que me gritou lá de dentro:

“Fecha isso que entra frio!”

 

Pentax K7, Tamron 18-200


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sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Talvez

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Talvez porque estava sol! Talvez por ser feriado! Talvez por faltarem ainda uma mão cheia de dias para o final do mês! Talvez…!

O autocarro levava apenas meia dúzia de gatos-pingados. Uma senhora idosa, gorda e de ar modesto, num dos bancos da frente; eu mesmo, de pé e com o saco nas costas e o tripé ao peito, no patamar junto à porta; um casal de meia-idade, num banco logo a seguir; lá para o fundo, em bancos separados, dois homens de idades indefinidas. E nada nos unia naquela viagem, não fora o partilharmos o autocarro e, por ser o dia que era e a hora que era, parecermos uma multidão.

Mas, metido que estava nos meus próprios pensamentos e observando que ia a avenida deserta como nunca, não teria dado por nada, ou quase.

O que me fez despertar para o que acontecia ali dentro foi uma voz, vinda da porta da frente. Um rapaz, de vinte e poucos, nem bem nem mal vestido, exclamava para o motorista: “Oh chefe! Não me faça isso! Logo hoje!”

Olhei, como os demais devem ter olhado também. A nota de vinte euros que tinha na mão contava a história sem falar. Ele queria pagar o bilhete, dois euros e vinte cêntimos, mas o motorista/cobrador não tinha troco. Deve ter-lhe proposto entregar-lhe um vale da quantia a devolver, para ser recebida numa das estações centrais da Carris. Lá na outra ponta da cidade e não naquele dia, que se tratava de um feriado.

Acredito que o rapaz não tivesse ali mais dinheiro que aquele e ficar sem nenhum, naquele dia, seria catastrófico. Depois de trocar mais uma palavras, em voz baixa, com quem lhe devia vender o bilhete, veio de passageiro em passageiro, perguntando se, por mero acaso, não teríamos troco de vinte euros. E a nossa resposta, cada um à vez, foi negativa. Por mim, tinha uns cinco ou seis euros em moedas e a nota mais pequena era de dez. Não chegava!

Regressou lá à frente, sempre com a nota na mão, suponho que para tentar convencer o funcionário da sua vontade de pagar mas também da sua impossibilidade de encontrar trocos para tal.

Entre mim e ele, a velhota sentada chamou-o. Tinha decidido fazer aquilo que eu mesmo estava a hesitar em fazer. Abrindo e rebuscando no seu porta-moedas, foi contando moedas até perfazer os malfadados dois euros e vinte do bilhete. E entregou-lhos, dizendo: “Tome! Vá lá pagar!”

“Mas…” titubeou ele, “Mas…!” “Vá lá”, interrompeu ela, “Vá lá antes que ele lhe passe a multa!”

E ele foi. Pagou o bilhete e deixou-se ficar por ali, junto à porta da frente.

Duas paragens depois a velhota saiu, transportando com dificuldade o seu próprio peso e o de um saco, volumoso também, que segurava. Não trocaram mais palavra e, creio, não mais se encontrarão.

Dois euros e vinte cêntimos. O preço da satisfação de ambos. O conceito de barato e de caro dependerá das posses de cada um deles. Que não me pareceram abastados, bem pelo contrário.

Mas…. Qual o preço de um sorriso? Talvez porque estava sol! Talvez por ser feriado! Talvez por faltarem ainda uma mão cheia de dias para o final do mês! Talvez…!

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 50 1:4


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quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Pecados

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Do rol dos pecados mortais, sou culpado de todos.

Uns mais frequentemente, outros notórios pela sua raridade, mas de todos sou culpado.

Mas um há que, e me desculpem pela franqueza, muito gozo me dá: a gula!

Quando chega a esta época não resisto e atiro-me aos doces.

No entanto, e apesar disso, sou selecto: só mesmo os muito tradicionais, aqueles que vêem de antanho, de tão longe que já a minha avó os chamava de muito antigos.

Mas, talvez por isso mesmo, pela sua idade e consequente simplicidade, são os melhores: broas de milho e figos secos com amêndoas.

As primeiras pecam por serem difíceis de encontrar. Talvez que por serem feitas de produtos considerados “pobres” (farinha de milho, mel e ervas aromáticas).

Os segundos são também menos nobres, já que os preferem com nozes. Mas por mim são mesmo assim, com amêndoas, se possível, torrados e no mesmo forno em que são feitas as broas.

Se puder, também tenho por esta época fatias paridas. Mas, e desculpar-me-ão, comi-as antes de as poder fotografar.

Eu disse que este era um dos meus pecados preferidos!

 

Pentax K7, Tamron 18-200


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quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Automatismos

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O episódio leva já uns bons trinta anos.

Pediram-me que fizesse parte do júri de seleção de operadores de câmara de vídeo. Profissionais já feitos. E eu deveria elaborar parte das provas teóricas e parte das provas práticas.

Para estas últimas concebi alguns exercícios a serem executados em estúdio, com graus de complexidade variada. E com um adicional: pese embora nenhum dos candidatos soubesse, cada um dos exercícios seria executado três vezes e o que seria avaliado seria a ou as correções que cada um fizesse a cada repetição. O que daria para perceber da noção que cada candidato tinha do que havia feito e do que teria que corrigir.

O último exercício implicava bom controlo de velocidade de panorâmica (movimento horizontal) e ajuste preciso de foco. Não era coisa fácil mas alguma dificuldade haveria que existir para se poder diferenciar entre candidatos.

Um deles, depois da primeira tentativa, que correu mal, e ao ser “convidado” a fazer de novo, começou a testar a funcionalidade de todos os botões que a câmara tinha. Estranhado tal procedimento, perguntei-lhe sobre o que procurava. A resposta não poderia ser mais explícita sobre o seu grau conhecimento do ofício: “Estou à procura do auto-focus, que isto é difícil.”

Dele não recordo nem nome nem rosto. Apenas que era um pouco mais baixo que eu e que era homem.

Recordei este episódio há uns dias.

Passei a minha câmara fotográfica para as mãos de fotógrafo que conheço e com larga experiência na matéria.

Depois de elogiar o quão bem aquele tamanho e peso fica nas mãos, quis fazer um “boneco”. Vantagem do digital, que estes testes são de borla. Mas estranhou a fotografia ter ficado desfocada e questionou-me. Lá lhe tive que explicar que aquela objectiva, com uns bons 35 anos, não permitia o foco automático e que o anel de focagem era o da frente. E acrescentei que o ajuste dióptrico do visor estava calibrado para o meu olho, mas que o poderia ajustar para ele, que é coisa fácil naquele modelo (Pentax K1).

“Ahhhhh!” foi a resposta, e fez mais uns dois disparos, sem corrigir a ocular.

Já em casa, no computador, confirmei o que suspeitava: as fotografias não estavam tão nítidas quanto se desejava.

Nos tempos que correm confia-se em demasia nos automatismos, tendo-se perdido o hábito de, usando-os, pensar e aquilatar mesmo antes de os usar.

Em termos fotográficos, os automatismos de focagem ou exposição são úteis e uso-os. Mas só de quando em vez e muito frequentemente com ajustes meus em cima do que o “japonês inteligente” sugere ou mesmo decide. As decisões, técnicas ou estéticas, têm que ser minhas! Mesmo correndo o risco de fazer asneira.

 

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptall2 90mm 1:2,5


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Uma história de natal

 

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Há muito, muito tempo, numa terra muito, muito longe, o sr. Pilim e a srª Narta tiveram um filho. Carinhosamente deram-lhe o nome de Dinheirinho.

Sabendo do acontecimento e exultantes com a boa nova, de imediato três magos de reinos distantes se dispuseram a venerar e ofertar. Vinham eles do reino do Fisco, do reino da Banca e do reino do Comércio.

Ajoelhando-se à chegada, logo lhe entregaram o que traziam: um cartão de crédito, um cartão de cliente e um cartão de contribuinte. E disseram-lhe:

“Aqui tendes as nossas oferendas. Acreditamos que com elas sereis maior e mais poderoso. Usai-as como entenderdes.”

E assim aconteceu: o recém-nascido cresceu, a sua palavra e influência espalhou-se pelos quatro cantos do mundo e tornou-se omnipotente, omnipresente e omnisciente.

Os magos, por sua vez, deram graças pelo seu desenvolvimento e trataram de erguer, em tudo quanto é lugar, templos de veneração: Repartições de Finanças, Instituições de Crédito e Centros Comerciais.

E hoje, todos acorrem aos locais de culto em datas como esta, fazendo as suas preces e doando as suas oferendas, num ritual sempre acarinhado pelos sacerdotes.

 

Contada esta fábula, tenho que ir ali ao balcão agradecer com uma oferenda este bolo e bica e seguir depois para fazer uma promessa por uns cigarritos que gastarei. Alguém aí tem lume?


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Espantos

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Lá que o Pai Natal consiga voar num trenó não me surpreende. Tanto as tecnologias de ponta como os segredos ancestrais conseguem coisas incríveis.

Que esse mesmo trenó seja puxado por renas levanta dois problemas, cada um de seu nível: se por um lado sempre se poupa nos combustíveis fosseis, por outro dá para perguntar onde pára a sociedade de protecção dos animais perante esta exploração.

Que o bom do velhote, com este meio de transporte, consiga numa noite só cobrir o mundo inteiro, chegando à maioria das casas à meia-noite locais, é algo que para ser explicado implica entendermos que o tempo não é algo de linear como em regra entendemos.

O que me deixa mesmo intrigado é como ele consegue, mais a sua barriga e saco de prendas, passar pelas ventarolas das chaminés e exaustores das cozinhas modernas.

 

Pentax K7, SMC Pentax M 75-150


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terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Panelas de Natal

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A tradição familiar dizia que o Menino Jesus descia pela chaminé para pôr prendas no sapatinho.

Assim, depois do jantar, a cozinha era imaculadamente arranjada, o fogão forrado com papeis “bonitos” e os sapatos colocados em cima deles.

Na manhã de Natal os pequenos, depois de toda a família acordada, eram autorizados a entrar na cozinha onde, para deslumbre total, lá estavam os presentes. Poucos, que os sapatos eram muitos, mas apetecidos e apreciados.

O mais velho dos quatro foi, naturalmente, o primeiro a ser informado da verdadeira história e a ser incluído na cerimónia da colocação das prendas.Depois do fogão decorado e dos mais pequenos terem recolhido à cama, foi a sua vez de colocar as suas prendas para toda a família, indo então deitar-se, que não podia ver as que lhe eram destinadas antes dos outros acordarem.

Acordou ele a meio da noite, com vontade de urinar e dirigiu-se à casa de banho. Mas logo lhe passou a vontade. Com receio que furasse o bloqueio de acesso à cozinha, tinham atado uma cadeira com tachos e panelas ao puxador da porta de seu quarto. Quando a abriu, tudo se espalhou pelo chão, acordando a casa por inteiro.

Não me recordo ao certo qual ou quais as prendas que recebi nesse ano. Mas tenho a vaga ideia de ter sido um famoso Renault 16 do “Tour” que esventrei e em cujo interior coloquei um pesado imã de bicicleta. Com ele, ganhava todas as provas de todo o terreno que na rua se faziam.

Ainda hoje, quando a família se reúne, ninguém me acredita que, então, apenas queria ir à casa de banho.

 

Pentax K7, Tamron 18-200

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domingo, 21 de dezembro de 2025

Bom feriado

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Deixo-vos uma informação quase completamente inútil: hoje é o dia mais curto do ano.

Falo daquele dia que intitulamos de “solstício de inverno” e em que, devido à forma como o nosso planeta se desloca na sua órbita solar, o Sol nasce mais tarde e põe-se mais cedo. No hemisfério norte, entenda-se, que no sul é o oposto.

Passada a referência astronómica, tenho para mim que este dia deveria ser feriado mundial. Para ser mais exacto, os dois solstícios e os dois equinócios deveriam ser feriados mundiais.

Desde sempre, e isso inclui a época pré histórica, estes dias foram observados e registados como sendo especiais, mesmo quando as condições atmosféricas não permitem a observação do nascer e pôr do sol. Como hoje, por estas bandas.

Não sei que ides fazer hoje, domingo. Mas estejais de folga ou estejais a trabalhar, guardai um niquinho do vosso tempo, por pouco que seja, para prestardes homenagem ao universo e no quão efémeros somos perante o seu continuo evoluir.

 

Nikon Coolpix P7000

sábado, 20 de dezembro de 2025

A aliança

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“Vivia sozinho e o meu orgulho impedia-me de ir pedir ajuda aos pais apesar de, naquela altura, os pagamentos da empresa onde trabalhava estarem atrasados. Naquele dia não tinha dinheiro nem para tomar um café. Revirei tudo em casa em busca de uma moedinha que fosse e nada.

Acabei por me meter no carro e ir a casa de uma amiga, que me poderia emprestar algum, pouco, para os dias que ainda faltavam até vir o guito.

Mas dei comigo a enganar-me no caminho e a entrar na via-rápida no sentido oposto. Com a pouca gasolina que tinha, não sabia se daria para inverter a marcha mais à frente, pelo que decidi continuar e ir a casa de uma outra amiga, que me haveria de ajudar.

Não estava em casa. Mas estava lá uma amiga dela. Não nos conhecíamos, mas já ouvíramos falar um do outro. Ajudou-me.

É hoje a minha mulher.”

E se isto não é uma bonita história de necessidade, coincidências, solidariedade e final feliz, adequada a qualquer época em geral, incluindo a que atravessamos, não sei o que o será.

Nota adicional  - Esta fotografia é da mão e da aliança de um dos dois protagonistas da história contada. Não é uma grande fotografia, mas foi o que consegui fazer quando o encontrei de novo, por entre os afazeres do ofício.

Poderia talvez fazer uma melhor, quiçá usando a minha própria aliança e melhor trabalhando luz e fundo. Mas não seria factual, podendo sê-lo.

Mas entre uma fraca fotografia factual e uma boa fotografia fictícia, prefiro a primeira. Que, mais importante que uma “boa” fotografia, para um photocronista importa a realidade. Ou passaria a ser um photorromancista.


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sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Uma questão de memória

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A  minha memória por vezes prega-me partidas.

Ao ouvir um noticiário hoje, relacionei duas reportagens e lembrei-me que o ainda actual presidente da República prometeu, mais que uma vez, erradicar os sem-abrigo da cidade de Lisboa.

Não sei como o faria, já que não tem poderes executivos nem no governo nem no município, mas o certo é que fez a promessa.

E, por mais que puxe pela memória, não me recordo de nenhuma acção que tenha feito nesse sentido. Nem de relatos a dar conta do cumprimento dessas promessas. Claro que este tipo de coisas não se alardeiam nem constam das agendas oficiais. Mas alguma coisa transpareceria se conseguida, até porque somos ferteis em fugas de informação.

Mas de nada me recordo.

Será que a minha memória está pior do que eu penso?

 

Pentax K7, Tamron 18-200


By me