sábado, 27 de dezembro de 2025

Grito matinal

Image



Quando fui ao frigorifico buscar a manteiga para a torrada matinal, ouvi uma voz que me gritou lá de dentro:

“Fecha isso que entra frio!”

 

Pentax K7, Tamron 18-200


By me

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Talvez

Image



Talvez porque estava sol! Talvez por ser feriado! Talvez por faltarem ainda uma mão cheia de dias para o final do mês! Talvez…!

O autocarro levava apenas meia dúzia de gatos-pingados. Uma senhora idosa, gorda e de ar modesto, num dos bancos da frente; eu mesmo, de pé e com o saco nas costas e o tripé ao peito, no patamar junto à porta; um casal de meia-idade, num banco logo a seguir; lá para o fundo, em bancos separados, dois homens de idades indefinidas. E nada nos unia naquela viagem, não fora o partilharmos o autocarro e, por ser o dia que era e a hora que era, parecermos uma multidão.

Mas, metido que estava nos meus próprios pensamentos e observando que ia a avenida deserta como nunca, não teria dado por nada, ou quase.

O que me fez despertar para o que acontecia ali dentro foi uma voz, vinda da porta da frente. Um rapaz, de vinte e poucos, nem bem nem mal vestido, exclamava para o motorista: “Oh chefe! Não me faça isso! Logo hoje!”

Olhei, como os demais devem ter olhado também. A nota de vinte euros que tinha na mão contava a história sem falar. Ele queria pagar o bilhete, dois euros e vinte cêntimos, mas o motorista/cobrador não tinha troco. Deve ter-lhe proposto entregar-lhe um vale da quantia a devolver, para ser recebida numa das estações centrais da Carris. Lá na outra ponta da cidade e não naquele dia, que se tratava de um feriado.

Acredito que o rapaz não tivesse ali mais dinheiro que aquele e ficar sem nenhum, naquele dia, seria catastrófico. Depois de trocar mais uma palavras, em voz baixa, com quem lhe devia vender o bilhete, veio de passageiro em passageiro, perguntando se, por mero acaso, não teríamos troco de vinte euros. E a nossa resposta, cada um à vez, foi negativa. Por mim, tinha uns cinco ou seis euros em moedas e a nota mais pequena era de dez. Não chegava!

Regressou lá à frente, sempre com a nota na mão, suponho que para tentar convencer o funcionário da sua vontade de pagar mas também da sua impossibilidade de encontrar trocos para tal.

Entre mim e ele, a velhota sentada chamou-o. Tinha decidido fazer aquilo que eu mesmo estava a hesitar em fazer. Abrindo e rebuscando no seu porta-moedas, foi contando moedas até perfazer os malfadados dois euros e vinte do bilhete. E entregou-lhos, dizendo: “Tome! Vá lá pagar!”

“Mas…” titubeou ele, “Mas…!” “Vá lá”, interrompeu ela, “Vá lá antes que ele lhe passe a multa!”

E ele foi. Pagou o bilhete e deixou-se ficar por ali, junto à porta da frente.

Duas paragens depois a velhota saiu, transportando com dificuldade o seu próprio peso e o de um saco, volumoso também, que segurava. Não trocaram mais palavra e, creio, não mais se encontrarão.

Dois euros e vinte cêntimos. O preço da satisfação de ambos. O conceito de barato e de caro dependerá das posses de cada um deles. Que não me pareceram abastados, bem pelo contrário.

Mas…. Qual o preço de um sorriso? Talvez porque estava sol! Talvez por ser feriado! Talvez por faltarem ainda uma mão cheia de dias para o final do mês! Talvez…!

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 50 1:4


By me

quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Pecados

Image

 


Do rol dos pecados mortais, sou culpado de todos.

Uns mais frequentemente, outros notórios pela sua raridade, mas de todos sou culpado.

Mas um há que, e me desculpem pela franqueza, muito gozo me dá: a gula!

Quando chega a esta época não resisto e atiro-me aos doces.

No entanto, e apesar disso, sou selecto: só mesmo os muito tradicionais, aqueles que vêem de antanho, de tão longe que já a minha avó os chamava de muito antigos.

Mas, talvez por isso mesmo, pela sua idade e consequente simplicidade, são os melhores: broas de milho e figos secos com amêndoas.

As primeiras pecam por serem difíceis de encontrar. Talvez que por serem feitas de produtos considerados “pobres” (farinha de milho, mel e ervas aromáticas).

Os segundos são também menos nobres, já que os preferem com nozes. Mas por mim são mesmo assim, com amêndoas, se possível, torrados e no mesmo forno em que são feitas as broas.

Se puder, também tenho por esta época fatias paridas. Mas, e desculpar-me-ão, comi-as antes de as poder fotografar.

Eu disse que este era um dos meus pecados preferidos!

 

Pentax K7, Tamron 18-200


By me

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Automatismos

Image



O episódio leva já uns bons trinta anos.

Pediram-me que fizesse parte do júri de seleção de operadores de câmara de vídeo. Profissionais já feitos. E eu deveria elaborar parte das provas teóricas e parte das provas práticas.

Para estas últimas concebi alguns exercícios a serem executados em estúdio, com graus de complexidade variada. E com um adicional: pese embora nenhum dos candidatos soubesse, cada um dos exercícios seria executado três vezes e o que seria avaliado seria a ou as correções que cada um fizesse a cada repetição. O que daria para perceber da noção que cada candidato tinha do que havia feito e do que teria que corrigir.

O último exercício implicava bom controlo de velocidade de panorâmica (movimento horizontal) e ajuste preciso de foco. Não era coisa fácil mas alguma dificuldade haveria que existir para se poder diferenciar entre candidatos.

Um deles, depois da primeira tentativa, que correu mal, e ao ser “convidado” a fazer de novo, começou a testar a funcionalidade de todos os botões que a câmara tinha. Estranhado tal procedimento, perguntei-lhe sobre o que procurava. A resposta não poderia ser mais explícita sobre o seu grau conhecimento do ofício: “Estou à procura do auto-focus, que isto é difícil.”

Dele não recordo nem nome nem rosto. Apenas que era um pouco mais baixo que eu e que era homem.

Recordei este episódio há uns dias.

Passei a minha câmara fotográfica para as mãos de fotógrafo que conheço e com larga experiência na matéria.

Depois de elogiar o quão bem aquele tamanho e peso fica nas mãos, quis fazer um “boneco”. Vantagem do digital, que estes testes são de borla. Mas estranhou a fotografia ter ficado desfocada e questionou-me. Lá lhe tive que explicar que aquela objectiva, com uns bons 35 anos, não permitia o foco automático e que o anel de focagem era o da frente. E acrescentei que o ajuste dióptrico do visor estava calibrado para o meu olho, mas que o poderia ajustar para ele, que é coisa fácil naquele modelo (Pentax K1).

“Ahhhhh!” foi a resposta, e fez mais uns dois disparos, sem corrigir a ocular.

Já em casa, no computador, confirmei o que suspeitava: as fotografias não estavam tão nítidas quanto se desejava.

Nos tempos que correm confia-se em demasia nos automatismos, tendo-se perdido o hábito de, usando-os, pensar e aquilatar mesmo antes de os usar.

Em termos fotográficos, os automatismos de focagem ou exposição são úteis e uso-os. Mas só de quando em vez e muito frequentemente com ajustes meus em cima do que o “japonês inteligente” sugere ou mesmo decide. As decisões, técnicas ou estéticas, têm que ser minhas! Mesmo correndo o risco de fazer asneira.

 

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptall2 90mm 1:2,5


By me

Uma história de natal

 

Image

 

Há muito, muito tempo, numa terra muito, muito longe, o sr. Pilim e a srª Narta tiveram um filho. Carinhosamente deram-lhe o nome de Dinheirinho.

Sabendo do acontecimento e exultantes com a boa nova, de imediato três magos de reinos distantes se dispuseram a venerar e ofertar. Vinham eles do reino do Fisco, do reino da Banca e do reino do Comércio.

Ajoelhando-se à chegada, logo lhe entregaram o que traziam: um cartão de crédito, um cartão de cliente e um cartão de contribuinte. E disseram-lhe:

“Aqui tendes as nossas oferendas. Acreditamos que com elas sereis maior e mais poderoso. Usai-as como entenderdes.”

E assim aconteceu: o recém-nascido cresceu, a sua palavra e influência espalhou-se pelos quatro cantos do mundo e tornou-se omnipotente, omnipresente e omnisciente.

Os magos, por sua vez, deram graças pelo seu desenvolvimento e trataram de erguer, em tudo quanto é lugar, templos de veneração: Repartições de Finanças, Instituições de Crédito e Centros Comerciais.

E hoje, todos acorrem aos locais de culto em datas como esta, fazendo as suas preces e doando as suas oferendas, num ritual sempre acarinhado pelos sacerdotes.

 

Contada esta fábula, tenho que ir ali ao balcão agradecer com uma oferenda este bolo e bica e seguir depois para fazer uma promessa por uns cigarritos que gastarei. Alguém aí tem lume?


By me

Espantos

Image



Lá que o Pai Natal consiga voar num trenó não me surpreende. Tanto as tecnologias de ponta como os segredos ancestrais conseguem coisas incríveis.

Que esse mesmo trenó seja puxado por renas levanta dois problemas, cada um de seu nível: se por um lado sempre se poupa nos combustíveis fosseis, por outro dá para perguntar onde pára a sociedade de protecção dos animais perante esta exploração.

Que o bom do velhote, com este meio de transporte, consiga numa noite só cobrir o mundo inteiro, chegando à maioria das casas à meia-noite locais, é algo que para ser explicado implica entendermos que o tempo não é algo de linear como em regra entendemos.

O que me deixa mesmo intrigado é como ele consegue, mais a sua barriga e saco de prendas, passar pelas ventarolas das chaminés e exaustores das cozinhas modernas.

 

Pentax K7, SMC Pentax M 75-150


By me

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Panelas de Natal

Image



A tradição familiar dizia que o Menino Jesus descia pela chaminé para pôr prendas no sapatinho.

Assim, depois do jantar, a cozinha era imaculadamente arranjada, o fogão forrado com papeis “bonitos” e os sapatos colocados em cima deles.

Na manhã de Natal os pequenos, depois de toda a família acordada, eram autorizados a entrar na cozinha onde, para deslumbre total, lá estavam os presentes. Poucos, que os sapatos eram muitos, mas apetecidos e apreciados.

O mais velho dos quatro foi, naturalmente, o primeiro a ser informado da verdadeira história e a ser incluído na cerimónia da colocação das prendas.Depois do fogão decorado e dos mais pequenos terem recolhido à cama, foi a sua vez de colocar as suas prendas para toda a família, indo então deitar-se, que não podia ver as que lhe eram destinadas antes dos outros acordarem.

Acordou ele a meio da noite, com vontade de urinar e dirigiu-se à casa de banho. Mas logo lhe passou a vontade. Com receio que furasse o bloqueio de acesso à cozinha, tinham atado uma cadeira com tachos e panelas ao puxador da porta de seu quarto. Quando a abriu, tudo se espalhou pelo chão, acordando a casa por inteiro.

Não me recordo ao certo qual ou quais as prendas que recebi nesse ano. Mas tenho a vaga ideia de ter sido um famoso Renault 16 do “Tour” que esventrei e em cujo interior coloquei um pesado imã de bicicleta. Com ele, ganhava todas as provas de todo o terreno que na rua se faziam.

Ainda hoje, quando a família se reúne, ninguém me acredita que, então, apenas queria ir à casa de banho.

 

Pentax K7, Tamron 18-200

 By me

domingo, 21 de dezembro de 2025

Bom feriado

Image



Deixo-vos uma informação quase completamente inútil: hoje é o dia mais curto do ano.

Falo daquele dia que intitulamos de “solstício de inverno” e em que, devido à forma como o nosso planeta se desloca na sua órbita solar, o Sol nasce mais tarde e põe-se mais cedo. No hemisfério norte, entenda-se, que no sul é o oposto.

Passada a referência astronómica, tenho para mim que este dia deveria ser feriado mundial. Para ser mais exacto, os dois solstícios e os dois equinócios deveriam ser feriados mundiais.

Desde sempre, e isso inclui a época pré histórica, estes dias foram observados e registados como sendo especiais, mesmo quando as condições atmosféricas não permitem a observação do nascer e pôr do sol. Como hoje, por estas bandas.

Não sei que ides fazer hoje, domingo. Mas estejais de folga ou estejais a trabalhar, guardai um niquinho do vosso tempo, por pouco que seja, para prestardes homenagem ao universo e no quão efémeros somos perante o seu continuo evoluir.

 

Nikon Coolpix P7000

sábado, 20 de dezembro de 2025

A aliança

Image



“Vivia sozinho e o meu orgulho impedia-me de ir pedir ajuda aos pais apesar de, naquela altura, os pagamentos da empresa onde trabalhava estarem atrasados. Naquele dia não tinha dinheiro nem para tomar um café. Revirei tudo em casa em busca de uma moedinha que fosse e nada.

Acabei por me meter no carro e ir a casa de uma amiga, que me poderia emprestar algum, pouco, para os dias que ainda faltavam até vir o guito.

Mas dei comigo a enganar-me no caminho e a entrar na via-rápida no sentido oposto. Com a pouca gasolina que tinha, não sabia se daria para inverter a marcha mais à frente, pelo que decidi continuar e ir a casa de uma outra amiga, que me haveria de ajudar.

Não estava em casa. Mas estava lá uma amiga dela. Não nos conhecíamos, mas já ouvíramos falar um do outro. Ajudou-me.

É hoje a minha mulher.”

E se isto não é uma bonita história de necessidade, coincidências, solidariedade e final feliz, adequada a qualquer época em geral, incluindo a que atravessamos, não sei o que o será.

Nota adicional  - Esta fotografia é da mão e da aliança de um dos dois protagonistas da história contada. Não é uma grande fotografia, mas foi o que consegui fazer quando o encontrei de novo, por entre os afazeres do ofício.

Poderia talvez fazer uma melhor, quiçá usando a minha própria aliança e melhor trabalhando luz e fundo. Mas não seria factual, podendo sê-lo.

Mas entre uma fraca fotografia factual e uma boa fotografia fictícia, prefiro a primeira. Que, mais importante que uma “boa” fotografia, para um photocronista importa a realidade. Ou passaria a ser um photorromancista.


By me

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Uma questão de memória

Image



A  minha memória por vezes prega-me partidas.

Ao ouvir um noticiário hoje, relacionei duas reportagens e lembrei-me que o ainda actual presidente da República prometeu, mais que uma vez, erradicar os sem-abrigo da cidade de Lisboa.

Não sei como o faria, já que não tem poderes executivos nem no governo nem no município, mas o certo é que fez a promessa.

E, por mais que puxe pela memória, não me recordo de nenhuma acção que tenha feito nesse sentido. Nem de relatos a dar conta do cumprimento dessas promessas. Claro que este tipo de coisas não se alardeiam nem constam das agendas oficiais. Mas alguma coisa transpareceria se conseguida, até porque somos ferteis em fugas de informação.

Mas de nada me recordo.

Será que a minha memória está pior do que eu penso?

 

Pentax K7, Tamron 18-200


By me

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Pegadas

Image



No regresso do cafezinho constato que o patamar de entrada do prédio estava a ser lavado.
Por muito que eu não quisesse, por muito que eu esfregasse os pés no capacho, garantidamente que iria deixar pegadas sujas naquilo que estava a ser limpo.
Com um sorriso amarelo, dei a saudação a quem limpava e comentei sobre a inevitabilidade do patinhar aquele espaço.
O sorriso que recebi de volta foi triste. Mais triste ainda porque enquadrado pela cara bonita que o suporta:
“Pois! Hoje não é mesmo um dos meus dias!”
Quase que estive para dar meia volta, fumar mais um cigarro na rua, apesar da temperatura, e aguardar que todo aquele lajedo secasse. Pelo menos, assim, ela não veria o destruir do trabalho que estava a fazer e pelo qual, quase que pela certa, nem sequer é bem paga. Não o fiz!
Que são realmente efémeras as limpezas que fazemos, tal como as pegadas que deixamos.

By me

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Velharias

Image



Não tem o problema moderno de as baterias se esgotarem. Ou aquele outro, bem mais clássico, de o cabo não ser suficientemente comprido.
Mas tem tantas velocidades quantas as que os bícepes e contiguos permitirem.
Este é um modelo pequeno, 25 cm, mas havia-os maiores. A ponto de alguns terem apoio de ombro para permitir uma maior pressão sobre o material a perfurar.
Não me perguntem onde o encontrei. Talvez que numa feira da ladra ou equivalente. E se me perguntarem quando foi a última vez que o usei a resposta é: nunca.
Mas é uma daquelas peças de que gosto, que guardo no meio de muita tralha e quando a encontro me provoca um sorriso e um pensamento:
“Os antigos tinham tempo e usavam-no para fazerem peças bonitas e úteis em simultâneo. Tanto nas ferramentas como este berbequim, como no que resultava do seu uso.”
Este é francês, fabricado por Peugeot Fréres. E não consegui encontrar nenhuma referência temporal.

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptal2 90mm 1:2,5

By me

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Tradições

Image



Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.

Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.

Neste caso, um texto de um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.

E, se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.


Como a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:


Para estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.

A minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte Luminosa.

Essa bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.

Ora, ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.

E a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a comer.

O pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido: «As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto, deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!

O que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.

Mas a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!

Foi assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.


Texto: by José Vilhena

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

As origens

Image



Chateia-me solenemente que o calendário me imponha estados de espírito.

Que me diga que nestes dias tens que estar alegre e feliz; ou que me diga que naquela época tens que alinhar na folia e quase disparate, agindo no faz-de-conta;  ou que me diga que naqueles dias tens que estar calmo, quase triste e comedido.

Chateia-me que me imponham estados de alma.

Também me chateia que me digam que, por estes dias, tens que dar tratos de polé à imaginação para decidires como vais gastar o pouco dinheiro que tens em prendas a terceiros, próximos ou não tanto. Porque se não percorreres ruas e vielas, centros comerciais e lojas de bric-a-brac procurando inspiração, quem não receber uma prenda vai sentir-se menosprezado, quiçá mesmo ofendido.

Também me faz sair do sério os jantares e reuniões de dezembro, onde todos sorriem para todos, simulando uma proximidade que não existe, parecendo estarem num concurso de hipocrisia.

E, no meio disso tudo, quase ignorarem a razão de ser da festividade. Que para cada vez menos gente tem significado real.

Este agnóstico convicto deseja a todos os crentes ou não crentes, não importa em quê, que tenham uma época de boas festas e que elas se prolonguem no seu espírito original por mais 52 semanas.

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 100 1:4


By me

domingo, 14 de dezembro de 2025

Interpretações

Image



Excepção feita às listas telefónicas e aos formulários e minutas oficiais, quase todo o trabalho humano pode ter duas ou mais interpretações. Umas mais óbvias, outras não tanto. Umas definidas à partida por quem ou faz, outras apenas descobertas por quem vê o resultado final.

Os trabalhos criativos não são excepção, talvez mesmo o oposto, sendo o expoente máximo da subjectividade. Quer se trate de pintura, escrita, fotografia, performances como música, teatro, bailado… Até mesmo a arquitectura tem essa característica, muito para além da estética e funcionalidades aparentes.

Tenho a desventura de não ser nada digno de nota nem na escrita nem na fotografia, pelo que tenho completar uma com a outra e vice-versa. Mas, e sem sombra de dúvida, que o que de pobre vou fazendo tem sempre mais que uma leitura ou interpretação possíveis ao dar por findo o processo criativo. E para além daquilo que quem veja ou leia encontre por si mesmo.

Por vezes há que contar histórias que não podem ou não devem ser contadas e a parábola é um subterfugio para a necessidade de contar. Por vezes é o deixar algo de fora propositadamente, tanto na fotografia quanto no texto, para que leitor ou espectador possa completar e criar a sua própria imagem e história.

Por vezes ainda, há que “passar recados” ou “dar lições” sem que isso se sinta de imediato e sem ferir susceptibilidades.

Outras ocasiões, não tenho o poder de síntese quanto baste e o resultado é essa mesma multiplicidade de interpretações.

Em qualquer dos casos, e enquanto autor (fraco mas autor), fico satisfeito quando é encontrada uma qualquer história, mesmo que não alguma das originais. Se alguma reacção acontece, mesmo que não a prevista ou mesmo que negativa, isso quer dizer que de algum modo comuniquei com que vê ou lê. Que de algum modo saí da trivialidade e consegui que alguém pensasse ou sentisse algo.

E isto para mim é uma vitória.

 

Pentax K7, SMC Pentax 50 1:1,2


By me

sábado, 13 de dezembro de 2025

Pensamentos após um debate eleitoral

Image

 

 

“Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, disse o mestre.

Esta é uma verdade quase universal.

Porque a raiva, essa, uma vez surgida dificilmente se transforma noutra coisa.

 

By me

Saco de compras

Image



Este é o meu saco de compras.

Em regra está no fundo da minha mochila, como reserva.

Mas tem o tamanho certo para livros, quer se trate de compra ocasional quer se trate de ir a uma feira de livros de fotografia.

A afirmação refere-se ao dinheiro que lá se deixa e ao peso que têm. Mas são sempre compras válidas, muito válidas.

Que os prazeres da boca têm o destino que lhes conhecemos, enquanto que os prazeres da alma, esses, perduram muito para além de 24 horas ou mesmo 24 anos.

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 100 1:4


By me

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Carta ao Pai Natal

Image



Querido Pai Natal:

Este é o meu pedido de prenda para este ano.

Eu sei que as coisas andam más e que talvez também aí tenham chegado os cortes dos subsídios e das reformas. Velhote como és, imagino!

Por isso, este ano não te peço nada daquelas coisas do costume: gadgets, paz na terra, saúde… aquelas coisas que toda a gente te pede por esta altura.

Só te peço uma cabeça.

Nem sequer são muitas ou a colecção toda. Só uma e à tua escolha.

Já sabes de que lote é que é: uma daqueles gabirus que nos andam a tramar a vida a torto e a direito, todos os dias mais um nico.

Escolhe tu por mim, que o que escolheres me satisfará certamente.

E se te mando já a carta com o pedido é porque sei que há muitos a pedirem-te o mesmo. Espero que esta não chegue tarde e que não tenhas já esgotado o lote por completo.

Mas, se estiver esgotado face aos pedidos, não penses que fico triste: basta que me mandes uma fotografia (sabes como gosto disso) da colecção toda assim, nas mãos de alguém. Não fico com inveja nem quero saber a quem as deste. Certamente que as mereceram e mais do que eu, que nem sempre me portei lá muito bem.

Beijinhos e até p’ró ano.

 

Pentax K7, Tamron 18-200


By me

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Comunicado

Image



Breve informação sobre o estado do tempo


Nikon Coolpix P7000


By me

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Ao calhas

Image



Por vezes faço isto: Mais ou menos ao calhas pego num livro, abro-o igualmente ao calhas e deixo que os meus olhos se prendam num qualquer parágrafo.

Isto foi o resultado do exercício de hoje, pouco depois de acordar. A imagem foi feita, também mais ou menos ao calhas, para acompanhar a citação.

“Outro critério de fracasso é o do desenquadramento e da descentragem: herdados das regras da composição pictórica em perspectiva, a expectativa que se tem de uma “boa fotografia” é que o motivo principal esteja centrado, situado no eixo do olhar, ao mesmo tempo que respeita o equilíbrio da divisão da superfície em três terços horizontais e verticais. Mesmo vazio, o centro propõe-se como ponto de referência, comandando a organização geral da fotografia. A expectativa do centro como ponto forte das imagens que se julga representarem a própria vida mostra até que ponto a convenção representativa corrompe esta imagem privilegiada, porque vestígio, da ideologia (*). A vida, o real, terão eles centro?

(*)A centragem não é apanágio da fotografia: encontra-se também de forma sistemática no cinema, em particular no cinema clássico hollywoodiano. Foi a pintura que, após ter instituído o Quattrocento, pôs em causa, pelo menos desde o séc. XIX, a centragem na representação visual.”

in: “A imagem e a sua representação”, by Martine Joly, Edições 70, pag 95

 

Pentax K7, Sigma 70-300


By me

domingo, 7 de dezembro de 2025

up ou downgrade

Image



O Pai Natal passou por minha casa mais cedo este ano. E fiquei apaixonado com o que me trouxe.

Bem sei que tem já 15 anos de fabrico, que pouco mais é que uma “point and shoot” em digital, que o sensor já não se usa e que não tem grande resolução perante os actuais padrões.

Mas é uma versão digital da velhinha Pentax auto 110, pela qual estive apaixonado há 50 anos mas não tinha como a comprar.

Esta está em estado imaculado e, como se isso não bastasse, é linda.

Por vezes um downgrade tecnológico é um upgrade afectivo e estético.

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 100 1:4


By me

Desânimo

Eu queria começar o dia aqui com algo de bonito, sincero, honesto, convincente.

Mas só me lembro de jornalistas e candidatos eleitorais, que querem.

Efeito borboleta

Image



Nada acontece por geração espontânea. Há sempre um motivo para cada coisa que nos sucede, e um motivo atrás desse, e um atrás desse, e um atrás…

 

Se não tivesse dado aulas, não me teriam oferecido aquela caneta. A que ganhei afecto e que, com o passar dos anos, acabou por se estragar.

E se não lhe tivesse ganho afecto, não teria tratado de arranjar uma substituta quase igual, que me acompanhou anos a fio.

E se a não tivesse comigo, não a teria emprestado.

E se a não tivesse emprestado não se teria estragado naquele dia.

E se não se tivesse estragado naquele dia, não teria eu, hoje, ido à procura de uma igual ou parecida.

E se não tivesse vindo aqui para a encontrar, não teria feito esta fotografia.

E se não tivesse feito a fotografia, não teria embarcado, depois, naquele autocarro.

E se não tivesse embarcado naquele autocarro, não a teria visto.

 

Era preta e dava nas vistas. Pela sua magreza extrema. Mesmo só pele e osso. Apesar de não parecer doente ou toxicodependente. Apenas muito, muito magra.

Quando o autocarro chegou ao fim da linha, foi perguntar qualquer coisa ao motorista. Que lhe respondeu: “É logo ali. O Rossio é logo ali, é só ir andando.”

Mas o ar dela era de quem estava meio-perdida, quase a entrar em pânico. Apesar de estarmos nos Restauradores, uns 200 metros de distância, para quem não sabe é o mesmo que estar a 10Km. Meti-me ao barulho.

Abordei-a, ainda no autocarro, e perguntei-lhe se ia para o Rossio. E que sendo, que viesse comigo que eu também ia para lá. (Não ia, mas não era importante)

E fomos andando pela praça fora, comigo a ficar intrigado: por mais que alterasse a cadência do meu passo, ela ficava sempre – sempre – um passo atrás. Aquela senhora, preta, nos seus trinta e tal anos, muito magra, fazia questão de apenas caminhar atrás de mim!

Ao fim de uns trinta ou quarenta metros oiço-a dizer algo de pouco perceptível (não consegui identificar o seu sotaque) de onde se destacava a palavra “comboio”.

Esclareci com ela se queria mesmo ir para a estação e ela confirmou-o. “Vamos”, disse-lhe. “Passamos à porta.”

Cinquenta metros (ou setenta) depois, chegámos.

“É aqui e lá em cima. Sabe onde é?”

Não sabia de todo.

Venha que levo-a. E continuei.

Voltei a ser surpreendido. Não sabia usar as escadas rolantes e ficou bem assustada no primeiro lance. No segundo já se entendeu, depois de algumas palavras encorajadoras. Afinal, ninguém nasce ensinado.

Lá comprou o bilhete para a sua estação, que sabia de cor e disse-me, meio confidente, que havia saído de casa sem carteira nem nada.

Depois de a levar às cancelas e de lhe indicar qual o comboio, fez um sorriso, lindo apesar da magreza das suas faces, e disse-me enquanto se curvava para a frente:

“Obrigado! Que Deus lhe pague. Obrigado.”

Fiquei meio envergonhado e afastei-me. Afinal, não merecia eu tal agradecimento de forma alguma.

E, mentalmente, enderecei-o para aquele motorista da Carris que, nesta mesma manhã e com uma luz quase equivalente, olhou em redor antes de começar a andar, constatou que vinha alguém a correr, a uns bons cinquenta metros, travou o autocarro e aguardou. E nem ouviu o que eu ouvi, e que bem merecia. Que ele estava a trabalhar enquanto que eu… bem, pouco mais que em passeio.

 

Nada acontece sozinho e sem algo que lhe dê origem. Ainda bem que trago sempre comigo a câmara fotográfica.

 

Nikon Coolpix P7000


By me

sábado, 6 de dezembro de 2025

Baratinho

Image



Em tempos estive inserido no mercado fotográfico. Fiz fotografia de teatro, de publicidade e umas aventuras mínimas na reportagem.

Deixei essa actividade por três motivos: porque não precisava dela para viver, porque odiava a competição insana do mercado e porque ouvi vezes demais pedirem-me “faz baratinho”.

O não precisar da fotografia para viver é apenas uma força de expressão. Tinha um outro ofício, regular e com ordenado certo, que me pagava as contas. A fotografia era, e é, o que me alimenta a alma. E o que ganhei com ela, se não serviu para por comida na mesa, serviu para pagar equipamento e completar em satisfação e dinheiro o que fazia no meu emprego.

A competição é algo que odeio. Ninguém tem que ser melhor que ninguém, ninguém tem que ser mais que ninguém, ninguém tem que ter mais que ninguém. O mundo e a vida são suficientemente cheios e ricos para que todos possam ter o seu quinhão sem que com isso tenham que apoucar os demais. E se eu não vivo de menorizar ninguém, não gosto de ser alvo disso mesmo.

O pedirem para fazer baratinho é algo que me desagrada profundamente. É menosprezar o trabalho, é achar que o que se sabe fazer pouco vale e que o tempo investido para aprender e melhorar é de borla. Prefiro, desde sempre, oferecer os meus préstimos de borla a fazer baratinho.

Acrescente-se que aqueles que agora estão a entrar no mercado e que fazem baratinho, não apenas estão a apoucar o que fazem como estão a prejudicar todos os outros, ao fazer baixar os preços ao limite das despesas directas.

A única situação é que peço desconto é quando, em pagando algo, pergunto se tenho direito a desconto por pagar em dinheiro trocado. E a única resposta que espero obter em troca é um sorriso divertido que ajude a quebrar a monotonia a quem está do outro lado do balcão.

 Divirtam-se e façam o favor de ter uma vida cheia.

 

Samsung S1060


By  me

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Leituras

Image



A fotografia não tem que ser explícita.

E as leituras não têm que ser instantâneas.

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 50 1:4


By me

Momentos de ócio

Image



O tipo de ofício que tinha proporcionava estas situações, que os horários eram demasiado malucos e instáveis:

Uma ocasião uma colega viu-se na contingência de ter que levar a filha para o trabalho.

Coitada da pequena, que frequentava o 4º ano, lá se ía entretendo como podia, sem atrapalhar o que ali se fazia. E a dado passo, talvez que as minhas barbas tenham sido um incentivo, veio perguntar-me se haveria papel disponível para escrever ou desenhar.

Claro que havia e indiquei-lhe onde. E ficámos um nico de conversa na qual acabei por lhe contar a história do Joãozinho e do seu barco. Contá-la-ei aqui noutra ocasião.

Mas, na sequência disto, acabámos por falar de aviões de papel, de como fazer e quais os modelos.

Enquanto eu lhe mostrava um deles, dobrando e vincando a folha com afinco e rigor, qual engenheiro aeronáutico, lembrei-me de tantos produtores de imagem, estática ou animada, que tanta questão fazem em “dobrar” a imagem a meio com o horizonte, ou de lhes aplicar regras matemáticas exactas, como o número de ouro, ou ainda algoritmos digitais aplicados às cores e luzes, deixando de parte o equilíbrio, a harmonia subjectiva, a criatividade, o expressar da alma.

 

Se a estética se resumisse a fórmulas e regras, há muito que os computadores teriam produzido obras-primas igualáveis apenas por outros computadores.

 

Pentax K1mkII, SMC Pentax-M macro 50 1:4


By me

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Escolhas

Image



Ir à feira do livro da fotografia faz-me mal à alma.

É que venho de lá com a tristeza de saber que estão ali tantas e boas obras, nas quais muito poderia descobrir e aprender, e ver-me na contigência de ter que fazer escolhas. Entre o que quero e o que posso, entre o conhecido e o desconhecido. Teóricos, monográficos ou colectânias.

Não que isso faça de mim melhor no que faço, mas empurra-me para algum lado mais à frente que aquele onde estou.

Este é um dos exemplos das escolhas deste ano.

O que nos é dito na contra-capa abre o apetite para outras leituras que não as mais recentes e, neste caso, por um autor que desconheço.

Para alguma coisa foram inventadas as longas noites de inverno.

 

Pentax K1 mkII, SMC Pentax-M macro 50 1:4


By me

Cota

Image



Certo!

Já por cá ando há um bom pedaço mais de meio século, pelo que o apodo de “cota” não será de todo desajustado.

Em termos de captação e tratamento de imagem, ao já por cá andar há tanto tempo, fez com que usasse de quase todos os sistemas e suportes: películas e sensores, químicas e electrónicas, CCDs, CMOS e tubos de raios catódicos, matricial e sequencial, pequenos médios e grandes formatos, estáticos, animados e de alta resolução.

Alguns desses processos tornaram-se com que uma segunda natureza para mim, outros  mais não são que história, outros ainda me são um pouco estranhos, não os dominando. E acredito que quem teve a sorte, como eu, de passar por tantos e tão díspares tenha dificuldade em estar a par de todos e que alguns deles pouco mais sejam que anacronismos curiosos ou tecnologias a dominar.

Por mim, que por dever de ofício ou satisfação da alma, tenho vindo a dominar ou a arranhar todos eles, tenho optado conhecer tão a fundo quanto me é possível o que tenho entre mãos, preocupando-me bem mais com os resultados que com os métodos. Quero “contar uma história”, e bem contada, com a ferramenta que estou a usar, preocupando-me a sério com as últimas tecnologias se e quando elas tiver que usar. Mantenho-me informado mas não as aprofundo como as que estou a usar ou em perspectivas disso.

Uma coisa há, no entanto, que é imutável. Que não depende dos equipamentos ou das tecnologias empregues: a luz. Esta, mais assim ou mais assado, com origem em aquecimento, descargas ou ionização de gás ou LEDs, continua a ser a emissão e reflexão de fotões, que têm uma trajectória rectilínea e um movimento ondulatório, cujas frequências são por nós traduzidas em cores, cuja interrupção na sua trajectória resulta em sombra, com uma intensidade variável na proporção inversa do quadrado da distância, cujo ângulo de reflexão é igual ao ângulo de incidência, e cuja trajectória é alterada pela aplicação de energia ou com materiais que lhe sejam permeáveis.

Mas, e principalmente, é ela que permite o captar imagem, sejam quais forem as tecnologias empregues. É ela que faz com que um dado assunto seja mais “bonito” ou nem tanto. É ela que nos permite contar histórias e estórias.

Nenhum fotógrafo, videógrafo, cineasta, profissional ou curioso interessado, ignora que ela é a sua matéria-prima nem a maltrata ou menospreza. Em o fazendo, os resultados são os que vamos vendo, infelizmente, na net e na imprensa, nos receptores.

Sendo esta a minha abordagem – talvez que de cota com mais de meio século – imagine-se como me sinto ao ter conversas com alguns da nova geração que entendem que a imagem se capta “mais ou menos” e que os contrastes, os ajustes das altas e baixas luzes, as sombras, os jogos de cor se tratam depois, desde que se possua uma boa máquina para os processar.

Um bom pós-processamento é vital na produção de imagem. Sempre o foi. E, se outros motivos não existissem, basta pensar que fotografia, vídeo e cinema têm – sempre – que ser objecto desse tratamento. Tanto na edição, como no controlo, na impressão, na etalonnage, nos efeitos especiais…

Mas com má matéria-prima – no caso, má imagem de origem ou má luz – por muito que se esforcem o mais que se consegue é um resultado sofrível. Se tanto. Nem mesmo os últimos avanços tecnológicos conseguem suprir essas falhas.

Dizerem-me que para se fazer uma boa imagem basta um gráfico de luzes e tons, estático ou animado é o mesmo que me dizerem que para Bruegel ou Leonardo bastava um bom pincel, que para Stanley ou Alfred bastava uma boa película ou que para Helmut ou Frank bastava um bom ampliador.

 

Serei cota com um pedaço mais de meio século a arrastar a carcaça mas, para mim, bem mais importante que o como é o porquê.


Pentax K7, Sigma 70-300


By me