quinta-feira, outubro 23, 2025

Presságio

 O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

Fernando Pessoa

quarta-feira, outubro 08, 2025

Se eu pudesse trincar a terra toda

 Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...


Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

segunda-feira, outubro 06, 2025

Entre o Sono e Sonho

 

Entre o sono e sonho,

Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sexta-feira, março 05, 2021

 No Teu Poema

No teu poema
Existe um verso em branco e sem medida
Um corpo que respira, um céu aberto
Janela debruçada para a vida
No teu poema existe a dor calada lá no fundo
O passo da coragem em casa escura
E, aberta, uma varanda para o mundo
Existe a noite
O riso e a voz refeita à luz do dia
A festa da Senhora da Agonia
E o cansaço
Do corpo que adormece em cama fria
Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai
Ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte
No teu poema
Existe o grito e o eco da metralha
A dor que sei de cor mas não recito
E os sonos inquietos de quem falha
No teu poema
Existe um canto, chão alentejano
A rua e o pregão de uma varina
E um barco assoprado a todo o pano
Existe um rio
O canto em vozes juntas, vozes certas
Canção de uma só letra
E um só destino a embarcar
No cais da nova nau das descobertas
Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai
Ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte
No teu poema
Existe a esperança acesa atrás do muro
Existe tudo o mais que ainda escapa
E um verso em branco à espera de futuro


Compositor: José Luis Tinoco

terça-feira, fevereiro 02, 2021

 Amor é fogo que arde sem se ver


Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor

Luis Vaz de Camões

quarta-feira, setembro 30, 2020

     Um beijo apaixonado


Te amo em segredo
Tenho medo de demonstrar
Não quero me decepcionar...

Já te vi me olhando
Com um olhar que me fez te desejar...
Um olhar tão belo
Como a luz do luar

Você com sua beleza e simpatia
Me conquistou
Quando te vejo passando
Imagino nós dois se beijando
Um beijo apaixonado
Com o sabor do pecado...

Seu sorriso
Seu olhar
Me faz flutuar
Não sei até quando vou aguentar
Te amar e não puder te tocar


Paulo Ipse

terça-feira, setembro 01, 2020

 

Quase um Poema de Amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema 
De amor. 
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! 
A nossa natureza 
Lusitana 
Tem essa humana 
Graça 
Feiticeira 
De tornar de cristal 
A mais sentimental 
E baça 
Bebedeira. 

Mas ou seja que vou envelhecendo 
E ninguém me deseje apaixonado, 
Ou que a antiga paixão 
Me mantenha calado 
O coração 
Num íntimo pudor, 
— Há muito tempo já que não escrevo um poema 
De amor.